sexta-feira, 27 de abril de 2012

Os Porões de Vovó



A minha avó reclamava de que noutros tempos, quando as moradias tinham jardins e não umas jardineiras, um quintal e não uma área interna...que havia um porão nas casas, túmulo dos objetos que não mais nos serviam. Os museus particulares de cada família. Hoje - dizia minha avó queixosa há trinta anos atrás - no máximo temos um baú e toda a nossa história tem que caber nele! O espaço e o tempo dedicados para as recordações tem diminuído com o incansável rotacionar do nosso planeta, constatava vovó receosa com o meu futuro.

Vai que o medo de dona Anna tenha sentido... Pensando bem, há poucos anos atrás, por exemplo, quando não havia os celulares, tínhamos sempre uma agenda telefônica onde guardávamos, é claro, os números de telefone das casas de nossos amigos, parentes, médicos e quem mais fosse pintando pela nossa vida. Essa agenda assim como nós, com o passar do tempo, acabava rápido, mas no caso do bloquinho cheio de nomes e de números o problema se resolvia facilmente: era só comprar um novo.  Aqueles menos apegados à organização, enquanto não comprassem uma agenda mais moderninha, usavam o espaço das últimas letras para os joões em excesso na vida. Havia, então, o momento não raro e quase que ritualístico de “passar a agenda a limpo”. Enganam-se, porém, aqueles que acreditam que essa era uma simples tarefa que exigia tão pouco raciocínio e que causasse tão pouca emoção como o apertar de um control C seguido de um control V. Não, meu querido e jovem leitor que só troca o chip de celular. Às vezes parávamos com a caneta na mão e olhávamos para o céu ainda que dentro do nosso quarto. Será que devo passar o Beto para a nova agenda? Puxa, doutor Clodoaldo morreu, gostava tanto da secretária dele... Caramba... o Eric...! Como será que ele está? Ele tinha a voz tão bonita... Eram tão comuns essas travas que havia até quem ligasse para um amor devidamente não correspondido usando a desculpa de que estava passando a agenda a limpo e... bem, se lembrou dela por acaso e resolveu dar uma ligadinha. Mas o engraçado, é que voltando o olhar novamente para as duas agendas, a velha e a nova, decidíamos, mesmo diante da certeza de que jamais ligaríamos de novo para o Anderson ou para a Aninha, que ainda assim eles iriam para a nova agenda. Simplesmente pelo fato de que ao olhar para aqueles nomes éramos remetidos a algum passado com açúcar. Um pretérito perfeito!, cuja lembrança valia a pena sentir pelo futuro afora. E, acreditem!, fazíamos isso sem ao menos sentirmos uma mágoa ou sofrermos pelo fato dessa doce recordação não ter tido o potencial de se tornar presente (Ainda que no fundo, bem lá no fundo, somente por sermos perversos, perguntássemos “ E se...?”).

E era assim que por apenas ter nos dado um bom e duradouro instante de ternura, de desejo, de saudade... que um determinado nome possuía uma força própria que nos dava uma pequena e absurda pena de deixá-lo simplesmente ali na velha agenda. 

Os tempos são outros, mas os sentimentos permanecem os mesmos. Há hoje os celulares com chips e o facebook. Resgatamos no meio dessa desarrumação feroz da vida os amigos de infância e da adolescência. Não negamos os ‘pedidos de amizade’ daquela amiga que te ensinou a dar um laço no tênis na escada da cantina. Agora, no entanto, essa imagem dentro de nós co-habita com as fotos dela na Disney, em Londres e na Lapa, com o cabelo de uma cor diferente, e com seus dois filhos calçados com sapatos de velcro. E, diante a necessidade imperiosa da distração que me obriga checar o facebook, certifico, com o mesmo temor de vovó, a força do impacto da suavidade de suas fotos, meu velho amigo, contra a minha memória. Tenho a impressão de que, caso não tenhamos um certo cuidado, ‘reencontrar’ pode se tornar um sinônimo de ‘perder’ e mesmo que ganhemos muito nesse reencontro virtual, o proveito não compense. O problema é que entre acompanhar o seu presente e fazer parte dele há uma pequena diferença. E que entre 'ver e ser visto' e 'lembrar e ser lembrado' essa desconformidade se agiganta e dependendo do tamanho pode ser fatal.

Eu agora, cheia de cronologia,  me pergunto se o futuro que vovó temia era esse. Falo isso porque no passar a limpo das agendas, imaginava eu, de vez em quando, que em algum lugar do mundo havia alguém que naquele determinado momento estivesse também pensando com a caneta em riste se o meu nome merecia ou não ser passado para a nova agenda. Se havia por Deus ao menos uma hesitação...ou quem sabe uma curiosidade: A Elika... por onde andará essa menina? Essa flor de maracujá? Eu não pensava somente nos amores avassaladores da minha adolescência, mas também nas amizades que outrora foram verdadeiras e que jurávamos até que seriam para sempre. Imaginava meu nome sendo escrito e ufa! Que alívio... O que devo fazer hoje para que meu nome merecesse esses segundos de reflexão de todos que me rodeiam? Eu, cheia somente de adolescência, pensava e pensava ... Sim, fazia sentido a minha preocupação!, porque ainda hoje ao abrir uma gaveta onde guardo um tanto assim de papéis e cartas escritos pelos amigos percebi como alguns ainda vivem intensamente dentro de mim. E, assim como cada um de nós morríamos um pouco quando alguém, no tempo e na distância, perdia o ímpeto do pensar em nós e jogava o nosso nome no lixo com a velha agenda (deus me livre...), será que não estamos nos matando por tanta exposição sem reflexão? sobrepondo tanta atualidade à saudade?

Quanta bobagem vovó até hoje me faz pensar.