quinta-feira, 9 de agosto de 2012

A Falsa Rainha

Desenho feito pelo artista Sergio Ricciuto Conte.

No início deste ano, resolvi tratar as minhas fortes enxaquecas. Estava aberta à qualquer tipo de tratamento a despeito de minhas crenças. Acupuntura, lobotomia, shiatsu, pilates, chá de erva amarga, reza forte, banho de pipoca,...qualquer coisa contanto que me tirasse a dor. Acabei mesmo me resolvendo pelo lado tradicional. Postei no feicebuque que sentia dores, muitas dores, dores horríveis!!!, e pedi sugestões dos amigos conectados. Em menos de um minuto, um amigo de escola da época em que eu lia e achava bom Paulo Coelho, respondeu-me prontamente fornecendo um número de telefone para eu entrar em contato.
Não vou me estender muito aqui contando o nosso estranho reencontro, depois de bem, quase vinte anos sem nos vermos e nem ao menos trocar uma palavrinha nesse intervalo que apesar da dimensão tenha sido efêmero por distração. Apenas farei uma pequena observação do tamanho de um só parágrafo. É costume universal quando vemos uma criança depois de um certo intervalo dizer “Nossa! Como ele cresceu!”, por ficarmos realmente assustados menos com o desenvolvimento da criança do que com o constatar do passar do tempo que ocorre para nós; também. Algo mais, porém, ocorre quando reencontramos amigos de infância quer ele tenha virado padre, professor, político ou quer tenha se transformado em um doutor. Percebemos a transformação externa, mas não conseguimos ver um adulto como um outro qualquer na nossa frente. Ao vivermos esse reencontro, não há cabelos brancos e rugas residentes em nossos rostos que nos impeçam de enxergar o menino que ainda é e sempre será, para nós, o amigo reencontrado. Por outro lado, somente nesses reencontros percebemos também que há um lugar dentro da gente em que seremos eternamente infantis. Ver, então, uma criança de jaleco, medindo a minha pressão, auscultando o ritmo das minhas sístoles e diástoles, e olhando a minha íris com uma lanterninha supimpa foi uma experiência que exigiu manobras psicológicas que ninguém havia me ensinado. Enfim, a minha sorte é que Leonam era do tipo "cê-dê-éfe", ou para usar uma linguagem mais atual, meganerd. Sentava-se sempre lá na frente na sala de aula e não me dava lá tanta atenção naquela época. Vi isso como algo extremamente positivo e procurei só pensar durante a consulta em quanto ele sempre soube mais do que eu. Esse manejo mental evitou que eu pegasse aquele estetoscópio e dissesse para ele “agora é a minha vez de ver como você está!”.
O ponto que me fez vir aqui hoje é que Leonam, ou melhor, o doutor Leonam permitiu-me, sem querer, um outro tipo de viagem. Ele percebeu que a causa das minhas dores de cabeça era minhas noites pessimamente dormidas. Para tanto, prescreveu-me uma pílula mágica que alguns minutos depois de ingeri-la temos o sono dos deuses. E se eu já sonhava antes por madrugadas afora, agora por elas adentro ando vendo filmes de longa metragem projetados, diria Freud,  na tela do esconderijo secreto: o inconsciente. As dores passaram, mas ao custo de toda manhã eu ter que me olhar no espelho depois de tudo o que me é revelado. Como ocorreu na alvorada de hoje.
Sonhei que ia por uma rua bem íngreme sob a luz da lua cheia, quando a uma curva do caminho dou de cara com um casarão tipo um castelo por onde orbitavam morcegos. As luzes estavam todas acesas de forma que eu poderia ver o que se passava lá dentro. De longe parecia uma festa, de perto, uma orgia. Corpos seminus dançavam freneticamente, gargalhadas estridentes, espadas de brinquedo em riste e chapéus de Napoleão. Não era uma festa. Não era uma orgia. Tratava-se de um hospício. Sozinha,  prontifique-me de sair de lá o mais rápido possível quando de repente, não mais que de repente, surge à minha frente vindo do alto, talvez de uma árvore, um homem pensando estar vestido de homem-aranha. A máscara nada mais era do que uma cueca vermelha onde no buraco das pernas viam-se olhos esbugalhados. Ele ficou naquela posição com os joelhos dobrados e as pernas arreganhadas, uma palma da mão apoiada no chão, o pulso da outra apontando na minha direção. Queria me agredir, mas não sem antes, aparentemente, prender-me com uma teia. Era um louco fugido e eu estava em pânico. Ocorreu-me, então, uma ideia salvadora:
       - Como ousas a interromper o curso de uma Rainha? Fique de pé e volte de onde veio antes que eu mande os cavaleiros das... os cavaleiros das... os cavaleiros das Tilápias te prenderem!
      O maluco imediatamente cumprimentou-me, tal como saudamos uma majestade: curvando-se  e de cabeça baixa, gesto natural dos submissos. Isso feito, saiu pulando em direção ao castelo passando pelos ramos altos que saiam de troncos lenhosos. Comecei a rir no sonho, mas ri tanto e tão alto que o barulho rompeu a barreira onírica e materializou-se nos tímpanos de meu marido que imediatamente acordou e ficou me olhando assustado. Achando que eu estivesse sofrendo, despertou-me acariciando cautelosamente o meu colo.
      Tivesse eu ainda na terapia, ouviria que a doida que existe em mim é trazida num regime altamente rigoroso tal qual uma monarquia. O espelho que fala sem firulas o que vê disse-me que o diabo será o dia em que ela, a doida, descobrir que eu não sou rainha nenhuma. 
     A doida que existe em mim... os doidos que existem em todos nós...Olhando para todos que me rodeiam percebo que a civilização não é passível de sucesso dado que todos nós sequer conquistamos um mínimo de equilíbrio emocional sem muito esforço. A Bíblia já nos diz isso há séculos de forma simbólica. Perdemos no pecado a condição de sermos racionalmente harmoniosos, somos proibidos de ter a visão do paraíso.
        Continuando a olhar a mulher descabelada e com olheiras no objeto de vidro e de metal bem polido, percebi que a doida que existe em mim é responsável pelas emoções mais puras que a vida me deu. É ela, essa descompensada oligofrênica de cabelos  longos e alvoroçados, portadora de um vestido branco, curto e todo rasgado, usando um chapéu grandão cheio de adereços e que vive descalça, que vira e mexe salta de dentro de mim e grita sim! num  momento em que meu ser civilizado, com calças sociais, blusinhas fru-fru e sapatos scarpins ameaça a dizer não a alguma aventura. Foi essa doida quem se apaixonou inúmeras vezes pela mesma pessoa e permitiu que um outro, amado somente uma, fizesse-lhe o primeiro filho. Foi ela quem chorou quando criança, debatendo-se e assustando os vizinhos, a perda de um preá . Foi ela quem negou Jesus Cristo, o único homem equilibrado e perfeito que jamais existiu na face da terra, por temer o mesmo fim. É essa doida que não adormece dentro de mim e que, por isso, nunca me deixou ter uma noite completa de sonos, pois, sempre me desperta ao ficar reivindicando aos gritos, muito antes do amanhecer, o direito de correr contra o vento. Essa louca contida, refreada, domesticada, enrustida e subjugada é o legítimo sustentáculo da minha verdadeira personalidade, é a medida da minha condição feminina, heroína e pobre-coitada, branca por necessidade, santa para tantos por tanta obtusidade, soldado obediente, mas que um dia há de revoltar-se contra toda essa conveniente disciplina e libertar de vez de toda essa loucura quando descobrir que nunca fui e que jamais serei uma Rainha.
         As dores de cabeça praticamente não existem mais e creio que ao parar de tomar o remédio elas não voltarão, pois a pureza de minha debilidade, antagonicamente poderosa pela sua fragilidade e pela sua força, está perto de ser coroada com flores, de ser adornada com bijuterias e de ir para as ruas saltitante, orgulhosa do que vê todas as manhãs naquele que reproduz nitidamente as imagens que o defrontam.