Há um mês atrás meu filho de doze anos resolveu que iria emagrecer, fruto da vaidade que agora desperta por estar chegando à adolescência. Além da dieta a que se submeteu decidiu caminhar todos os dias pela manhã e pediu-me para acompanhá-lo para que o tempo passasse mais rápido. Assim, há um mês acordo com ele já de tênis a me apressar “vãobora, mãe!” e assim, começamos o nosso dia juntos pelas ruas de Madureira às seis da manhã.
Na primeira semana já observamos que certas cenas se repetiam: a avó levando os netos à escola, o homem de bigode que saía com uma pasta e deixava um rastro de perfume barato, o pai carregando a mochila da filha sempre sonolenta ao seu lado, seu Armindo abrindo seu botequim, Dona Ivonete arrumando a banca de jornal, seu Ivaldo indo comprar pão...na terceira semana verificamos que determinados fatos se repetiam em alguns dias apenas. Tem gente que só lava calçada terças e sextas; segundas, quartas e sextas as pessoas se desfazem de seus lixos colocando-os para fora e outros os remexem. Sempre os mesmos lixos. Já sabem onde tem lixo bom.
Expliquei para meu filho algo que ele já sabia, mas como temos que enganar o tempo encurtando–o nas nossas mentes, tentei fazê-lo com palavras. Falei que o nome daquilo do que estávamos fazendo parte era cotidiano. Cheguei a cantarolar Chico, mas logo percebi que Chico se referia ao que acontece das portas de casa para dentro e estávamos do lado de fora. Eu me referia ao cotidiano das ruas, das calçadas em que andávamos, dos bares e padarias do subúrbio carioca.
Estamos na quarta semana e ele demonstrou um certo cansaço desta monotonia matinal. Não há mais nada de novo para nos distrair. Talvez se sairmos dez minutos mais cedo tudo possa mudar, né mãe? É, tudo muda se sairmos dez minutos mais cedo todos os dias. No meio desta nossa conversa, divagando o que mudaria em um curto intervalo de tempo no dia-a-dia das pessoas, somos surpreendidos por um fato que quebrou a nossa mesmice das seis às seis e quarenta. Um homem deitado no meio da calçada, bem vestido, porém, com as nádegas de fora. Nós o vimos de longe e logo me apavorei. Será que está morto? E se estiver, passamos por ele? Chegamos mais perto e vimos que respirava. Babava no cimento. Dormia o infeliz um sono dos deuses pela sua feição. Algumas passadas adiante, ainda digerindo aquela imagem, ouço meu filho surpreso “mãe, que horror, o homem com a bunda de fora! Você viu a bunda dele? Que vergonha!” (...) Ainda em processo de uma difícil digestão que havia começado pelos olhos, entrava em mim, agora, algo pelos ouvidos. Descobri que as enzimas não ajudam muito quando o alimento ruim não entra pela boca. Olhando para aquele ser em formação que andava rápido ao meu lado para perder alguns quilinhos tentei falar algo de peso para a sua vida. Disse que o rapaz, mais do que parte de seu corpo à mostra, estava com a vida exposta. Todos que por nós passavam não nos diziam nada além de bom dia, e que ele ali estatelado no chão, dormindo, dizia a todos que estava com um grande problema. Perguntava se ninguém iria ajudá-lo, ria do nosso medo de nos aproximarmos e do nosso alívio ao vê-lo respirando. Admirava-se com a nossa frieza e gritava para o chão, indignado, que ele não o sentia. Sonhava em não acordar.
No dia seguinte, não saímos dez minutos mais cedo. Não fazíamos mais questão de ver nada de diferente. A calçada onde outrora um homem dormia e a sujava com a saliva que saía de sua boca aberta, estava limpa. Ao passarmos por ela, questionei se o rosto daquele sujeito estaria limpo também da poeira do chão que lhe serviu de travesseiro na noite anterior. Acho que não, ouvi. Nem o rosto dele nem a minha consciência. O menino aprendera uma difícil lição. Entre a insipidez de nossos relógios e a efemeridade da dor impotente, devemos buscar uma terceira opção.
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