quinta-feira, 15 de outubro de 2009

“Para que serve um livro que não tenha figuras ou conversas?” *

*Alice, em Alice no país das Maravilhas


Há tempos coleciono livros. Meus três filhos sabem que independente do preço e da época do ano, livro é a única coisa que eles ganham, na hora em que me pedem, sem o menor questionamento e hesitação. Muito pelo contrário. Certamente aprendi isso com papai que sempre me deixava à vontade nas livrarias e nas bienais da vida. Gostou desse? E pronto. Era meu. Simples assim. Reclamava do preço das roupas, das mensalidades das escolas, mas nuncanuncanunca ouvi papai reclamando do preço de um livro.

A verdade é que por conta disso eu já li muita besteira tendo a sensação de estar digerindo o manjar dos deuses. Hoje abro alguns livros e me divirto com a minha saudosa e doce imaturidade. Em uma fase rápida de minha adolescência, por exemplo, fiz dos livros de Roberto Freire a minha Bíblia Sagrada. Para quem não o conhece ele foi um sociólogo anarquista inclusive (e principalmente) do amor. “Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários”. Quanta bobagem... Essa é uma das partes por mim sublinhadas! Desde meus quatorze anos tenho essa mania de sublinhar expressões que me marcam de alguma forma nos meus livros. Às vezes faço um comentário curto ao lado de um parágrafo ou coloco o nome de uma pessoa que tenha sido lembrada quando li determinada locução. Não é raro ver numa obra literária lida por mim um simples ponto de exclamação ao lado de uma pequena parte ou seção de um discurso do autor. Quer dizer que eu fui deliciosamente surpreendida naquele momento.

Por conta disso não gosto que me emprestem livros. Eu os rabisco. Tenho mania de dialogar com o autor e dar minha opinião. Se gostou muito de um e quer que eu leia me dê as referências. Eu compro. Ou me presenteie. Mas não me empreste. Mesmo porque eu tenho dificuldade em devolvê-los caso me apegue realmente. E, pelo visto, outras pessoas são iguais a mim. Há uns buracos em várias prateleiras de minha biblioteca e consequentemente nas minhas lembranças. E isso é um pouco chato. Um pouco só.

Fato foi que de uns tempos para cá comecei a comprar livros em sebos. O último que comprei, com o intuito de estudar para a prova do doutorado que será sobre o filósofo e doido varrido Kant, foi um livro de Georges Pascal. O Pensamento de Kant. A compra foi feita pela Internet e para quem se interessar pelo site: estante-virtual-ponto-com-ponto-bê-érre. A livraria foi honesta, disse que o livro estava com as folhas amareladas e com algumas anotações feitas a lápis. Mandei vir mesmo assim. A diferença de preço para um novo era cinqüenta reais com trema e tudo. O que umas anotaçõezinhas iriam me atrapalhar? Sublimar-lhes-ei! Disse eu com a convicção de quem usa uma mesóclise nos dias de hoje.

Ao abrir o livro fui surpreendida de imediato por um nome escrito de próprio punho numa tarde certamente chuvosa de quarta-feira com uma caneta bic azul. Uma adorável sensação de estar de mãos dadas com alguém, estranhamente se fez presente quando escrevi com a minha caneta preta pentel Elika Takimoto, 2009 bem abaixo de Patrícia Alves Pinto da Veiga, 1986. Isso foi na sexta-feira retrasada. Fazia sol.

Patrícia, para meu desespero, tem a mesma mania, ou tinha há vinte três anos atrás, que eu. Sublinha, coloca pontos de exclamação, comenta, coloca pontos de interrogação(!). Patrícia não entendeu muita coisa que Georges lhe explicou. Eu fico agoniada com o fato dela, por exemplo, não ter entendido que “...o caráter intuitivo do espaço explica que tais juízos são sintéticos e, como a intuição é pura, a síntese é a priori”. Mas porque ela não entendeu? Estava tão clara no parágrafo anterior a explicação do Georges dessa proposição kantiana ... ai, Patrícia, por que você não entendeu? Será que eu estou entendendo errado então??? Por outro lado, às vezes fico orgulhosa com a Pati. Quando, por exemplo, ao lado de um parágrafo difícil eu vejo um ponto de exclamação. Ufa! Ela entendeu também. Olha que esse foi brabo, hein? E coloco o meu ponto de exclamação ao lado do dela. O parágrafo foi duplamente entendido!!

Depois que conheci Patrícia parei para refletir sobre o que ando fazendo nos meus livros. Eu nunca havia me dado conta de que um dia as minhas anotações, o meu diálogo silencioso com algum autor, as minhas lágrimas e os meus aplausos fossem vistos e ouvidos por mais alguém e que um simples ponto, seja ele de exclamação ou de interrogação, causasse tantas dúvidas e travasse tanto uma leitura.

Ainda estou mergulhada nos meus pensamentos que se voltam para mim mesma e examinam o meu hábito de literalmente meter meu dedo e minha lapiseira aonde não foram chamados. Mais um motivo para entrar urgentemente numa terapia.

Enquanto a coragem de encarar meu inconsciente de frente não aparece, fica a certeza de que pelo menos a Alice, a que andou no país das Maravilhas, se deliciaria lendo tudo o que já li.



9 comentários:

  1. Elika minha amiga!
    Eu aqui lendo seu magnífico post e rindo, pois também tenho algumas manias além de ler faço questão de deixar aquele livro que gosto, assim bem visível na estante, mas não gosto de emprestar pra não voltar com orelhas...
    E olha! uma coisa que adoro, ficar organizando trocando esse aquela de lugar...
    Grande abraço!

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  2. Oiiii...

    Sem polêmicas, sem profundas reflexões sociais e sem bater de frente com ninguém, mas, mesmo assim, deliciosamente escrito. Você realmente já se tornou uma craque, que exibe todo o seu talento de dribles desconcertantes, toques geniais e gols improváveis a cada partida.

    "Há uns buracos em várias prateleiras de minha biblioteca e consequentemente nas minhas lembranças." (Toque genial)

    "Sublimar-lhes-ei! Disse eu com a convicção de quem usa uma mesóclise nos dias de hoje." (Drible desconcertante)

    "Enquanto a coragem de encarar meu inconsciente de frente não aparece, fica a certeza de que pelo menos a Alice, a que andou no país das Maravilhas, se deliciaria lendo tudo o que já li."
    (Mais um golaço)

    Adorei.

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  3. Olá Elika

    Gosto principalmente da inquietude de seus textos.

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  4. Olá minha ex-aluna Élika Takimoto. Gostei muito de seu texto, pois, não obstante parecer um paradoxo, tem rico e sutil caráter filosófico. Outrossim, expõe discretamente o seu estado psicológico no momento em que o escreveu. Seus constantes mergulhos no inconsciente (encarados de frente) provam a sua sensibilidade e profundo caráter espiritual (embora você não admita ainda isto abertamente, eu insisto dizer que você o tem - lembre-se: eu a conheço pessoalmente há anos). Se a entendi bem, num ponto você está enganada - você encara o seu inconsciente de frente SIM e SEMPRE (pois há constantes reflexões filosóficas - e você extravasa escrevendo, revelando sentimentos e emoções, desabafando, questionando etc); não percebe, ou mais provavelmente, não admite. E vou mais longe: "você está a um passo da espiritualização consciente, ou seja, da percepção viva de sua gênese e de sua essência". As vezes, você transcende sem perceber (pelo menos eu acho). Por acaso, a tese simples, mas filosoficamente complexa: "ETERNIDADE DA ESSÊNCIA" lhe parece estranha ou muito complexa?
    Beijos.
    Seu ex-professor - o meticuloso Valentim (talvez um ET para os dias de hoje).

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  5. Leitura é assim mesmo. Eu tenho hábitos parecidos. Risco sob a idéia escrita. Sublinho a beleza de uma frase ou de uma imagem ou ...simplesmente beleza.
    Muitas vezes não compreendo de primeira mão. Deixo de lado e volto mais tarde. Também converso com eles, a ponto de poder chamar alguns de amigos. E é uma conversa onde o amigo não é interrompido por mim, ele exige que eu tenha paciência de ir até o final da página, capítulo ou livro.
    E mais, a escritora ou poeta é aquele que nos devolve o fruto da sua leitra, como aliás, você sempre faz. Com carinho, com disposição e abertura. O texto é fluente e gostoso. Além do belo, ela gruda, de uma forma agradável.

    Segue um haicai de Guilherme de Almeida:

    Cochilo. Na linha
    eu ponho a isca de um sonho.
    Pesco uma estrelinha.

    Viu a brincadeira com as palavras?
    Beijos, felicidades e saúde. Sempre.

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  6. pois é eu também sou assim
    só nao escrevo nos livros porque eu acho eles um pouco indefesos e fico com muita peninha...
    mas é nessas horas que eu percebo q em escreve nao sou eu nem o autor, mas sim nós dois juntos!
    e nesse caso vc, Georges e a patrécia, né..
    hahahha
    bjos, Elika.

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  7. Elika,
    Lendo seu testo fiquei dando umas olhadelas para os meus livros...
    Como não tenho filhos fico pensando onde eles irão parar quando eu não estiver mais aqui.
    Quem os lerá? Gostará deles?
    Talvez, se alguém lê-los, venha a me conhecer melhor através deles do que através de mim.
    Isso dá um post rsrsrs
    Beijos.

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