sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Fim do Grande Mistério de Ricardo Cardoso


Eu estava numa festa, no meio de amigos e o tempo suficiente para que a maioria deles já estivesse sob o efeito ainda agradável do álcool. E eu não bebo. Não porque não queira, não porque acho feio e, muito menos por causa de religião. Não bebo porque não posso. Infelizmente não posso. Minha prima Elise me explicou um dia que é porque eu tenho deficiência de aldolase que é a enzima do fígado que age na segunda etapa da metabolização do álcool. A metade da população japonesa é assim. Sem aldolase.  Daí que o subproduto da primeira etapa da metabolização é tóxico e causa taquicardia e vasodilatação. Fico vermelha como um tomate e se alguém colocar a mão na minha cabeça consegue medir meu pulso. É melhor ficar só na coca-cola mesmo. 

Há tempos percebo que todos meus amigos quando bebem acabam sempre filosofando. Uns com mais, outros com menos, mas sempre com uma certa profundidade. Depois de um certo momento é fácil encontrar alguém falando olhando para o zero, para si ou para a alma de outrem.

Nessa festa não foi diferente.

Estava eu, então, indo abastecer meu copo de refrigerante quando Ricardinho do Isopor, assim conhecido entre os amigos por participar das nossas rodas de samba acreditando que o encontro de sua mão com o fundo de uma caixa de isopor produz algum som agradável, se colocou na minha frente com um sorriso no qual se via, além de todos os dentes da frente, os sisos. Um troço de doido. Animadíssimo, é claro, perguntou-me:
- Elika, qual é o grande mistério da vida?

Boa. Eu havia falado sobre isso essa semana com a Nara. Disse a ela que eu entendo a teoria da relatividade, mas não há teoria que me explique como algo tão duro como um milho se transforma em algo tão macio como a pipoca. Ao jogar os grãos na panela sinto-me fascinada. Isso não é natural. É sobrenatural, Nara!!!! Mas, não deve ser essa a resposta que Ricardinho esteja querendo ouvir...

Pensei na minha tese que está em vias de elaboração. A inércia! De onde vem essa propriedade dos corpos? Será que vem das estrelas? Enquanto pensava na pergunta contraía os músculos da testa e apertava os olhos tentando lembrar do último artigo que li sobre isso, mas ao retomar o foco para o rosto do Ricardinho do Isopor com os seus olhos esbugalhados e todos os seus dentes  ainda a amostra, percebi que ele não estava querendo ouvir sobre a inércia...

Lembrei-me, então, da Santíssima Trindade, do ilusionista que empurra moedas pelo vidro, do Hideo e da Lua que fica grandona às vezes. Não necessariamente nessa ordem. Diante da minha demora, Ricardo me fez outra pergunta na ansiedade de compartilhar o que lhe tirava o sono (ou não, como veremos). 

Seguirá na sequência um diálogo sem precedentes na minha vida:

- Você já deixou de pagar alguma conta por esquecimento, Elika? - Perguntou Ricardo para a minha alma.

- Já. - Confessei.

- Como você se sentiu, Elika? – O olhar de Ricardo atingia o meu cerebelo.

- Mal. – Respondi abaixando a cabeça.

- Você já deixou de dar um recado importante, Elika?- Lembrou-me Ricardo, sem nada saber a respeito, do fato d´eu ter quase acabado com um casamento.

- Já. Já. – Respondi com o queixo ainda escondendo meu cordão.

- Como você se sentiu, Elika? – Os sisos do Ricardo não estavam mais visíveis. 

- Mal. – Disse após um longo suspiro.

- E se lembrasse dessas coisas um pouco antes de dormir? Admite que isso poderia tirar o seu sono, Elika? – Eu já não via o Ricardo na minha frente. Ele havia se transformado no Voldemort!

- Sim!Sim! Claro que sim!

- Mesmo sabendo que não seria um caso de vida ou morte... você ainda assim !!! ficaria mal, Elika? – UUUrrúúrráááááááááá. Vi os molares de novo.

- Mal. Mal! - Avemariacheiadegraçaosenhoréconvoscobenditosoisvóis...

- O que é uma conta ou um recado diante da certeza de que nós morreremos?- Filosofou.

- ...

- Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará??? Eis o grande mistério da vida.

 - ... -   Ãããhnn?

Ricardinho mantendo o sorriso após a última pergunta, de repente levantou os braços como se tivesse acabado de ver um gol do flamengo e continuou:

- Nós somos emoção! Tudo é emoção! A vida é emoção!

Quando a porta do banheiro se abriu e ele entrou.

Glub.   

Fim  de festa. Voltamos para casa. Colocamos um filme para ver e Nelson dormiu antes que o nome do filme aparecesse na tela. Vi o filme todo. Depois peguei meu livro. Li um tanto. Já era tarde. Levantei-me para ver se as crianças estavam cobertas. Voltei a deitar. Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará? Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará?  Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará?Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará?

Foi  o fim do grande mistério da vida de Ricardo Cardoso.



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Ricardo Cardoso fala através de parábolas mesmo sóbrio. Essa é a verdade. Esse texto foi uma homenagem e a prova de que o que ele fala não é fácil de esquecer (quando conseguimos compreendê-lo). Meu amigo, espero que receba tudo isso na esportiva e que os nossos diálogos rendam outras histórias. Grande beijo procê!


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Se esse texto agradou,  quem sabe você não goste desses também?




14 comentários:

  1. Bom texto Élika, muito bom mesmo!

    A gente dorme porque não tem jeito e segue,alguns secretamente, eu acho, com a esperança de que isso tudo nunca acabará! hehe.

    Ricardo Sibanto Simões

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  2. Valeu, Ricardo Sibanto Simões!!!

    Quem me dera ter essa esperança...

    Beijos

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  3. Oi, Elika,


    Muito bom, bem ao seu estilo.
    Agora virei personagem do seu blog também!
    A finalização do texto está com cara de Nara. Vocês andam se copiando.

    Beijos, Elise.

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  4. Difícil não pensar que um dia a gente perde nosso lugar na janelinha:
    _ "Numpodi mais olhar não?"
    _ "Não, meu filho, agora acabou..."

    Crucial talvez seja tentar convocar uma amnesia dessa sina, caminhar esquecido pelos cantos do mundo, espantado com tanta beleza. Espantado e feliz de verdade quado a sorte faz a gente tropeçar num texto danado de bom, feito esse.
    Muitobrigadodinovo!

    Andre Nakamura

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  5. André!

    Que bom que vc gostou!!!

    Compartilhando eu amnésio-me.

    Nãoháoquegradecê.

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  6. prof! nem li, mas tenho que admitir que esta imagem é muito bem feita. parece HD.

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  7. Muito bom, minha irmã!
    Agora eu também terei dificuldades para dormir.
    bjs,Tata

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  8. René René René... o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René?o que eu faço com o René? =)

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  9. Pois é, Ta! Não é um inferno isso? =)


    Esse povo fala e sai andando...ficamos nós sentados no meio fio sem saber para onde ir...

    Fiquei ligadona!!! 8-\

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  10. E se você ficar sem dormir por uns dez dias, tudo acabará ainda mais cedo. Simples.
    E sendo assim, melhor dormir despreocupada, e viver cada dia como se fosse o último. Um dia, a gente acerta. Beijos.

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  11. Pois sua história de mistério nos prende, como uma narrativa de suspense, afinal quem não quer saber o mistério da vida? Mais são tantos! A pipoca sem duvida é um deles. Mas mais que mistério da vida, eu prefiro pensar na mágia da vida. Que como maga tudo transforma. Assim nada acaba. Se torna outra coisa. Assim não deixemos de dormir, nem de viver, nem de pensar, nem de se surprender, nem de SE entregar aos mistérios ou magias da vida. SEJAMOS EMOÇÕES!

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  12. Djabal,

    Se eu viver cada dia como se fosse último o mundo não me suportaria.

    Antes de morrer eu quero fumar, tomar meu primeiro porre bem tomado, pular de parapente, de asa-delta e ir ao Japão...

    Complicado usar essa filosofia de vida para mim...

    =P

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  13. Raquel,

    Obrigada pelo comentário.

    Sim, sejamos emoções!

    =)

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