Nara tem sentido medo ultimamente. E como consequência de qualquer medo anda tendo umas visões. Minha filha que eu julguei pronta para viver quando completara oito anos, tamanha era sua independência e determinação, agora, pré-adolescente, cisma em ter a mãe ao lado na hora de dormir a anda dando uns gritos estridentes pela casa como se realmente estivesse vendo fantasmas.
Achei estranho e resolvi apurar o caso com a delicadeza de uma bailarina e a esperteza de Sherlock Holmes. Enfim, coisas que só as mães sabem fazer.
- Nara, desembucha logo e diz o que está acontecendo. – Essa sou eu, como sabem. Quando sou firme e não sei ao certo o que fazer, eu falo desse jeito aí.
- Ai, mãe, você nem vai acreditar, mas a Aline é espírita e a Erica estava me explicando que quando a gente morre, a gente fica por aí, sabe? Quer dizer, uns ficam, outros voltam em uma outra pessoa, sei lá, mãe, uma confusão. E a Izumi disse que é espírita também porque estava fazendo um trabalho sobre o nosso bisavô que morreu na guerra e começou a sentir umas coisas. Daí, a professora disse que ela estava sentindo o espírito dele e ela que anda meio mística ultimamente falou para mim que era espírita agora. Ai, mãe, eu acho que sou espírita também porque ando vendo umas coisas que eu não quero ver...
- Deixa de bobeira, Nara! – Disse eu tentando usar sem sucesso o que aprendi nos livros de Içami Tiba.
Expliquei depois, mais comedida, que algumas crianças da roça juram de pé junto que já viram mula-sem-cabeça, que quando estou sozinha em casa e com medo de ladrão qualquer vento batendo na janela me assusta, que os católicos veem a Nossa Senhora numa nuvem...
- ... e tem mais, madame, se for sair por aí dizendo que é espírita tem que saber sobre o que está falando!
Eu, na verdade, estava despreparada como os pais pegos de surpresa quando os filhos perguntam de onde vem os bebês. Por mais que eu tenha um parecer bem definido sobre o tema, eu não me sinto preparada para discutir ainda, com profundidade, questões dessa natureza com um filho. Achei o debate precoce. Mas, o que eu não queria decididamente naquele momento é que Nara formasse uma opinião somente com o que chegasse pelos ouvidos. Em se tratando de algo tão importante, que será o alicerce para a visão que se terá de mundo e consequentemente para a vida, é preciso experimentar por todos os sentidos. Beber de várias fontes não como os jogadores bebem água no intervalo de uma partida, mas sim como os enólogos que visualizam o vinho no copo, sentem o aroma, verificam a textura para enfim, só depois, degustá-lo.
Não posso me esquecer de que esteja ou não essa explicação correta, não há dúvida de que a religião tem tido o papel de fazer com que as pessoas se contentem com o que possuem e com o que deixam de ter de uma hora para a outra. Todos, em maior ou menor grau, viveriam bem menos angustiados sendo religiosos. Vai que Nara precise disso...
- Toma aqui. - E dei a ela, com a mesma vontade e insegurança de uma criança que devolve o brinquedo do amigo, o Livro dos Espíritos de Allan Kardec. Nara ficou olhando assustada para a capa.
- Quem foi esse cara?- Perguntou minha filha apontando o desenho do rosto do autor estampada na capa e desprezando completamente a minha vontade silenciosa de adiar a discussão.
Antes de responder a essa pergunta, descontrolei-me ao ver a Nara folheando, curiosa, o livro que eu mesma havia acabado de colocar em suas mãos.
- Presta atenção, mocinha, num fato interessante: quando alguém tem uma experiência religiosa que provoca a sua conversão, é sempre para a religião ou para uma das religiões mais comuns em sua própria comunidade. E há tantas possibilidades, Narinha ...por exemplo, é muito raro por essas bandas daqui que alguém tenha uma experiência religiosa que leve à conversão para uma religião em que a principal divindade tenha a cabeça de um elefante!
- Cruzes, mãe! Que doideira!
- É, mas fique você sabendo que na Índia existe um deus meio rosa de cabeça de elefante que tem muitos devotos! Por que a Virgem Maria não aparece lá na China onde não há tradição cristã pronunciada? Por que os detalhes da crença religiosa não ultrapassam as barreiras culturais? Se você quiser muito saber a Verdade, é necessário ficar esperta, mocinha. Quando compramos um carro usado não basta lembrar que precisamos de um carro. Afinal de contas, ele tem que funcionar! Não basta que o vendedor seja simpático, carismático e bem articulado. Mesmo diante de uma figura dessas, chutamos os pneus, abrimos o capô, verificamos o odômetro...ou até chamamos um amigo que entenda de carros mais que a gente! Fazemos tudo isso por uma coisinha assim, como um carro. Em questões sobre a origem do mundo, a natureza dos seres humanos, como devemos nos comportar? Lembre-se disso ao ler essas páginas, ok?
E no momento que estava falando tive uma epifania que subitamente me acalmou. Meu coração desacelerou com a entrada lenta do ar que preencheu ao máximo meus pulmões e os deixou com a mesma demora.
- Nara, minha filha, na verdade eu acho que a busca é válida e que deva ser praticada sempre, mas não com o intuito de descobrir a resposta e ficar com a sensação arrogante de que a possui perante os outros que ainda não a encontraram. Mesmo porque eu acho que se algum dia chegarmos a ponto de imaginar que compreendemos a fundo quem somos e de onde viemos, teremos fracassado. Buscar não é impor ao Universo ou a Deus nossas predisposições emocionais, mas aceitá-Los com coragem e receber com humildade o que a nossa exploração revelar. A propósito, esse cara da capa foi o fundador do espiritismo. Allan Kardec, Nara. Nara, Allan Kardec. Agora que vocês dois já se conhecem , vão conversar em outro lugar, por favor.
Verbalizei a minha vontade de ficar só e fui respeitada da mesma hora. Nara pegou o livro pelos braços como se abraçasse um amigo. Agora lá estão eles iniciando uma grande discussão e cá estou eu refletindo sobre o que ando fazendo com meus filhos.