domingo, 22 de novembro de 2009

Viver é Desenhar Sem Borracha*

* Millôr Fernandes
Eu acreditava que a vida era assim: existia o certo e existia o errado e ponto final. Tudo bem que o certo e/ou o errado é relativo. Mas, a partir do momento em que alguém se encontra num referencial fixo, essa relatividade naturalmente se esvaece. Ou é correto ou não, visto dali dos olhos de quem está vendo. E com o preto e o branco devidamente definidos, estamos prontos para escolhermos os nossos amigos, os nossos pares, para julgar terceiros e para educar os nossos filhos. Simples assim.

Ledo engano. Esta semana que passou acabou com essa ilusória simplicidade das duas cores.

Cena 1: Conversa entre mim e meu filho adolescente na sexta a tarde.

Abre parêntese

Hideo tem dezesseis anos, repetiu o oitavo e o nono anos. Era para o ano que vem prestar vestibular. Mas não. Hideo ano que vem começará o ensino médio. Futuro? Futuro para o Hideo é o que ele vai fazer nesta noite ou, no máximo, no próximo final de semana. Ah, já ia me esquecendo: Hideo é o menino mais popular da escola.

Fecha parêntese

- Mãe, vou sair hoje. Vou à casa do Biel com o Coutinho.
- Como sair? Você nem pegou num livro! Semana que vem é semana de provas!
- Mas eu não vou estudar hoje a noite. Qual o problema?
- O problema? O problema é que a sua vida é um circo! Só que eu, Hideo, não sou palhaça!
- Mas quem te chamou de palhaça, mãe?
- Se eu deixar você sair hoje eu vou me sentir uma.
- Mãe, você está falando estranho. Está estressada. Vem aqui me dá um abraço e dança comigo.
- Tá vendo? É assim que você encara a vida. Tudo na brincadeira. Você debocha de mim, Hideo. Pois hoje, Hideo, hoje (!!!) você vai ficar em casa refletindo sobre o seu futuro e sobre o seu comportamento.

Hideo me pegou para dançar. E eu fiquei tentando me desvencilhar.

- Mãe, para com isso. Por que você não aceita o fato que eu não gosto de estudar?
- Porque você precisa estudar para passar para uma boa faculdade e trabalhar e ganhar dinheiro e tudo o mais que estou careca de dizer.
- Mas, mãe, sinceramente. Você acha mesmo que eu saindo hoje a noite vou comprometer tanto assim o meu futuro? Você acha que eu não vou dar um jeito na minha vida quando chegar a hora? Por que você não consegue se orgulhar com o fato de seu filho ser conhecido pela simpatia que emana, pelo poder de agregar os amigos, de organizar encontros...pelas namoradas que tem e que muitos não conseguem ter? Você já percebeu como você fala comigo sempre? Só brigando! Não consigo fazer você ficar orgulhosa de mim. Será que se eu fosse um desses seus alunos nerds e vivesse em casa estudando, você dançaria comigo?
- ...
- Posso sair?
- Não volte muito tarde, ok?

Cena 2: Conversa entre mim e minha filha de onze anos.

Abre parêntese

Pati, minha yorkshire, se enroscou com Apolo, o pinscher horroroso da Dona Nilce, mesmo depois de eu ter tomado tantos cuidados para que um não se aproximasse do outro. Conclusão: os filhotes-de-cruz-credo nascerão em breve. E eu que havia arrumado tantos yorkshires lindos para ela, todos com pedigree...

Fecha parênteses

- Mãe, vamos ficar com todos os filhotes?
- Claro que não! Não vamos ficar com nenhum!
- Como não?!? São os filhos da Pati! Pelo menos com um temos que ficar, mãe! – Nara já estava com os olhos brilhando demais da conta por mim suportável.
- Nara, não e ponto final!- (Ó, jesuis, por que os meus pontos finais nunca funcionam como na gramática???).
- Mas, mãe, por que não?
- Porque vão ser filhotes-de-cruz-credo. Todos vira-latas. Assim que a Pati morrer a gente escolhe um bem bonitinho de raça.
- Esse é o seu critério? Se tem ou não raça e pedigree?
- Sim. – Disse eu, sem titubear, baseada no que sempre ouvi de minha mãe: "Cachorro para viver dentro de casa tem que ter documento!".
- Mas e eu? O que eu sou? Não sou uma vira-lata? Tenho a pele morena, olhos puxados...eu valeria mais para você se fosse uma japonesa pura?
- Claro que não, Nara! Que idéia!
- E por que o seu critério muda para os bichos? Por que você não aceita o fato de que a mistura entre eles possa até, quem sabe, gerar melhores resultados?
- ...
- Posso ficar com um?
- Vamos conversar com o papai, tá bom?

Cena 3: conversa entre mim e meu filho de três anos.

Abre parêntese

Desde antes d’eu ter o meu primeiro filho, ouvi dizer pela boca de ilustres e famosos psicólogos que o certo é: quando se ouvir uma criança que está aprendendo a falar pronunciar uma palavra errada, jamais repeti-la na forma em que foi dita. Isso só reforçará o erro. Devemos, em seguida sempre, proferir o vocábulo corretamente.

Fecha parêntese

- Móin, eu quelo bolo de combole.
- ..., ..., ..., o que, meu filho?... o que você quer? – perguntei eu, tão emocionada quanto aqueles que se encontram pela primeira vez em frente às Cataratas do Iguaçu.
- Eu quelo bolo de combole, móin.

Neste momento, tive a certeza de que nunca mais comerei rocambole na minha vida.

Depois dessa semana, difícil agora é dar alguma opinião seja lá sobre o que for. E ponto.



14 comentários:

  1. Caracaa Elika oO
    Genial o seu texto, muito bacana mesmo.
    Acho que nao so voce, mas qualquer um que venha
    a ler este texto, vai aprender bastante com ele.
    Parabéns.
    Beijos e Sucesso =D

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  2. Mais tarde comento com mais cuidado, por enquanto, só saudades...

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  3. Conheço a Elika artista plástica que decora até ovos, a blogueira que sei também ser professora e essas coisas.
    Ora, um professor vocacionado é um educador de nascença e sempre o será até morrer, e ponto.
    E o educador encontra seu maior desafio justamente com essas criaturas adoráveis que eles próprioos trouxeram à vida, os filhos, que aprendem inclusive a argumentar, a negociar, de um jeito fascinente.
    Sorte a sua de assim ser em casa. No fundo, é a educadora quem mais aprende com seus educandos, em casa também, como não?
    Comigo também se passa coisa parecida.
    Fui professor, passei décadas dentro de salas de aula, não descarto a possibilidade de uma "volta às aulas" a qualquer momento, e o balanço geral meu é que bem mais aprendi que ensinei, não posso nem dizer que infelizmente.
    Adorei esta sua bela blogada, Elika.

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  4. Verdadeiro e mais atual impossível. Só quem é mãe sabe a verdade de cada uma desses cenas. Realmente não sei mais o que certo ou errado, só sei que vou vendo e aprendendo a cada dia, e a cada dia também mudando um poucos todos os conceitos que tinha sobre o que é realmente certo e o que é realmente errado.
    Foi muito bom, obrigada pelo minuto de reflexão proporcionado.

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  5. Acho que as coisas são desse jeito mesmo: A gente passa a maior parte da vida correndo às cegas feito loucos, sabe-se lá pra onde. De vez em quando, dá de cara com uma revelação, uma surpresa, uma dádiva...e pronto, quem nem pensava que podia parar com a correria, fica estatelado com aquela cara de bobo, de quem está pela primeira vez experimentando as maravilhas da vida.
    Alguns de nós têm sorte de encontrar esse surto de beleza em casa mesmo...ou, quem sabe, receber esse presente das mãos e do sopro delicado da Elika Takimoto que deixa o nosso dia tão mais bacana.
    Obrigado,
    Assis Dutra

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  6. Elika, que trabalhos lindos!
    Nos desenhos, atraiu-me a expressão dos olhares assim como um ar vintage explícito em alguns deles. Um encanto, sem dúvida.
    Parabéns!

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  7. Oi, Elika,

    Gostei muito do último texto.
    Argumentação é um exercício diário. Achei muito bom.
    Cada filho vai traçando sua vida e nem sempre é algo convencional. Não foi isso com você?
    Beijos, Elise.

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  8. Dizem alguns entendidos ou sábios que a criança é iluminada. Talvez nós como pais não consigamos ver, atolados que estamos no dia-a-dia, do ganhar o pão com o suor do rosto, preocupado com o futuro dos filhos. Mas o futuro deles não será o nosso, será sempre deles.
    Outras portas se abrirão, outras formas; afianço que o método do Hideo está correto. O objetivo dele ainda não está claro, mas estou certo que estará um dia, uma hora, um momento.
    Existe por aqui um filho de japoneses, que também não gostava de estudar, o pai, o mandou aprender culinária (o que ele já fazia em casa) em sua terra natal, para ganhar a vida. Ele adorou a idéia ou a viagem ou ambos. Aprendeu, viajou e hoje é um cozinheiro famoso, que não se preocupa mais com dinheiro. Ganhou o suficiente, sem nunca ter pensado nele, apenas pensou em ser feliz e tirar a mãe para dançar. Só para lembrar: pé de jaca não dá manga.
    Beijos e parabéns.

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  9. Mãe, você realmente é a melhor!!!
    E eu aprovo que esse texto não mente, que tudo que tem nele é verdade!
    Te amo!
    Beijos

    Nara

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  10. Caraca

    O mais legal é assumir a reflexão e ter coragem de postar para que inclusive os protagonistas leiam, não. sei o que faria

    BJS E PARABÉNS

    MAZINHO

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  11. Preto no Branco?

    Bom...

    Para quem fez física cor não passa de um tipo de código que recebe uma representação para nossa estrutura perceptiva que se estabelece a partir da captura de radiações associadas a um certo espectro de frequências.

    Pros poetas é metáfora sem materialidade alguma.

    Pra vida... Bom... Pra essa eu acho que é só um pedaço de confusão.

    Beijos, Ricardo Sibanto.

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  12. Elika, entender os filhos como peças independentes - mesmo que ainda no nosso tabuleiro - é o segredo: encaminhar os filhos sem tantos atropelos, o mistério. Renascer, em cada discussão é saber-se retornado ao tempo anterior: quando éramos os filhos. Com certeza não é fácil. Com certeza seu texto é magistral. Abraços, Pedro.

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  13. Queridona,

    Millor é Millor e não precisa da VEJA para nada. Pelo contrário, a presença dele por lá é uma das únicas coisas que dão algum sentido à publicação dessa "revista", que é claramente inimiga da democracia e do Brasil. Ele está lá porque serve de "escudo" para eles dizerem que há alguma perspectiva progressista lá. Pra você ver, das duas dezenas de pessoas que me escreveram sobre o tema, somente você, supergênia, citou o nome dele: as pessoas não o associam à publicação.

    Beijoca de sempre, clap-clap de sempre.

    PS: Como sintetizar uma revista que tem como seu "principal articulista" (leia-se parajornalista) um sujeito que diz que CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE é um BANANA, com sua POESIA PIEGAS, e que não sabe porque as pessoas escrevem de graça em blogs, além de ser CAPANGA DE DANIEL DANTAS?

    Não dá!

    Beijoca de novo.

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  14. Como eu disse que comentaria mais tarde, aqui estou, pois sou homem de palavra.

    Que saudade do meu neném falando bolo de combole...

    bjs

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