Já sabia desde ontem que hoje o dia seria difícil. Antes de sair de casa tratei de por a caixa de Neosaldina na bolsa. Lá pelas três da tarde certamente um comprimido seria subtraído. Marido embarcado, meus pais viajando e eu aqui com três crianças, duas casas para olhar (papai só viajou com mamãe na condição d’eu aguar as plantas, colocar cloro na piscina, pegar as cartas, revistas e jornais, cuidar da Hanna e alguém dormir lá) e a minha vida tendo que seguir normalmente.
Nara faz teatro, inglês, piano e estuda no sexto ano. Eu faço italiano, doutorado, sou professora e tenho mais dois filhos além dela. Tive que levá-la e trazê-la do teatro, do inglês, do piano e da escola e não podia perder as aulas de italiano, deixar de dar aula e me encontrar com o orientador. Além de aguar as plantas, colocar cloro na piscina, pegar as cartas, cuidar da Hanna e dar atenção ao restante da prole. O pior é ter coincidido com a semana de fazer mão e pé. O pé é que me matou.
Hoje não teve jeito, tive que pedir ajuda ao meu vizinho para levar Nara a escola. Aqui em Madureira é assim: podemos contar com a ajuda, a oração e a fumaça de nossos vizinhos. Dona Jurema sempre que defuma a casa dela deixa um pouco de fumaça entrar na minha, diz que mesmo que eu não acredite, ela faz questão de purificar a minha casa também. Umas duas vezes por semana, meu cafofo fica com o maior cheiro de macumba. Já dona Nilce gosta de colocar a Ave Maria bem alto todas as manhãs. Diz que mesmo que eu não acredite, ouvir a Ave Maria só me faz bem. Sendo cercada de vizinhos que se preocupam tanto comigo, na hora do aperto são os primeiros a serem lembrados. Seu Ivaldo, não tenho a quem recorrer... O senhor pode levar a Nara hoje na escola para mim para eu poder trabalhar? Com o maior prazer, minha filha! Seu Ivaldo é assim, parece que foi feito de açúcar. De quebra levou Yuki para passear.
A minha aula termina meio dia e trinta, encontro com o orientador uma hora na UERJ, uma hora de conversa prevista, depois tenho que entregar dois livros no CBPF, lá na Urca, antes das três e meia tenho que chegar em casa para dar tempo de Marilene fazer a mão e o pé (!) e sair a tempo de buscar Nara na escola e levá-la ao piano. Vai dar tudo certo. Tem que dar tudo certo.
Quando saí da sala no último tempo de aula recebi uma mensagem pelo celular. “Eka, quer ver uma coisa super engraçada? Liga para a mamãe agora. Bjs Lyli”. Ótimo, nada como rir num dia tenso. Imediatamente liguei para os pombinhos em Lua de Mel. Alô, pai! E aí, curtindo muito? Ah, que bom! Lyli me falou que vocês têm algo para me contar que eu vou rir... Papai não estava lá com nenhuma voz de estar achando nada engraçado mas passou imediatamente para a minha mãe. Alô, mãe, tudo bem? Elika? Kkkkkkk (Kkkkkk é minha mãe rindo) o seu pakkkkkkkk está brabo comigkkkkkkkkkk! Estamos conhecendo as vinícolas aqui do sukkkkkkkkkkk. Resumindo, em cada vinícola que paravam, mamãe experimentava o vinho que elas produziam. Resultado? Essa alegria desmedida. Enquanto ouvia mamãe tentando falar já estava a caminho da UERJ. Almocei hoje as risadas de mamãe.
A conversa com o orientador foi tranquila. Chegamos à conclusão que eu só tenho que ler mais uns seis livros antes de fazer a prova de seleção e acionar um plano B. Saí de lá não sem antes engolir um comprimido. Tudo bem. Estava tudo como havia previsto.
O que não estava no script do programa foi eu não encontrar rápido uma vaga aos arredores do CBPF. Cheguei à rua e dei uma piscadinha para o flanelinha com os faróis pedindo vaga. Ele ficou juntando e afastando os dedos de uma só mão com cara de quem pede desculpas. Não havia vagas... Ok, vou dar mais uma volta. Desliguei o rádio. Nunca entendi porque não consigo procurar uma vaga com o rádio ligado. Dei mais duas voltas no mesmo quarteirão quando o flanelinha me parou. Moça, encosta ali naquele ponto de ônibus com o pisca-alerta ligado. Enquanto a senhora dá essa volta sempre sai um carro. Obedeci. Abri a janela.Esperei um minuto e quarenta segundos. As pernas estavam balançando. Será que vai sair alguém? Perguntei ao flanelinha tendo a sensação de que nunca mais as pessoas sairiam de onde estavam. Sempre sai. Respondeu o flanelinha tendo a certeza de que eu não estava raciocinando. Mais um minuto e quinze segundos. Pior, moço, sabe?, o que eu tenho que fazer é tão rapidinho ... Aonde a senhora vai? Vou ali, entregar uns livros no CBPF. Falei com cara de choro já acreditando que terminaria o dia com o meu pé cheio de cutículas e calos. Faz o seguinte, deixa a chave comigo que se precisar eu manobro para a senhora. É rapidinho mesmo, né?
Por um motivo mais do que justo e explicado não pensei duas vezes. Entreguei a chave, peguei os livros e saí correndo. Somente no elevador dei conta do que havia acabado de fazer e entrei em pânico. Comecei a ouvir todo mundo me dizendo: Como você é burra! Não lê os jornais? Você veio da roça? Não ouve rádio? Como você confia assim em um flanelinha? Aimeodeos, e se o moço roubar meu carro... Não vai dar tempo de fazer nem a mão! Como pude fazer isso? E a Nara? Vou ter que ligar e pedir socorro ao seu Ivaldo de novo! Onde estava com a cabeça? Mania minha de sair confiando em todo mundo! Será que já não é tempo de crescer e amadurecer? Papai vai me matar quando souber que eu confiei num estranho...
Entrei na Biblioteca, disse à moça que era só para entregar os livros e voei na janela para ver a rua. Está preocupada com o carro, senhora? Ah sim, deixei a chave na mão do flanelinha. A senhora fez isso? Não lê os jornais? Você veio da roça? Não ouve rádio? Como você confia assim em um flanelinha? Olha, moça, se a senhora for um pouco mais rápida talvez dê tempo d’eu desfazer tudo isso e a felicidade continuar a existir para mim.
Assinei sem ler nada uns papéis que a moça-slow-motion me deu e desci pelas escadas com uma aceleração de dez metros por segundo ao quadrado. Se o carro estiver lá vou dar cem reais ao moço bonzinho. Fiz essa promessa sabe Deus para quem. Saí correndo pela rua, torci o pé e me aproximei do flanelinha pulando como um saci apostando corrida. Se machucou, moça? O flanelinha me perguntou se dirigindo rápido e assustado na minha direção para me ajudar. Depois me acompanhou até o carro e me disse: vou tirar o talão para a senhora poder estacionar em qualquer outro lugar hoje sem pagar nada. Dei os três reais do talão e sorri, a ponto das minhas orelhas se mexerem e meus olhos ficarem somente vinte por cento abertos para o moço bonzinho que deve ter se assustado com o que viu. É melhor a senhora ir andando...
Marilene se atrasou. Terminei o dia somente com as unhas das mãos pintadas, estranhamente feliz e aliviada, mas com uma sensação de que do dia de hoje posso tirar uma grande lição. Essa dorzinha chata no pé torcido e esse bando de cutícula nos dedos dos pés parecem estar querendo me dizer alguma coisa... Bom, deixa isso pra lá.
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Parágrafo excluído:
Voltando para casa liguei o rádio, coloquei o CD de Toquinho e cantamos juntos bem alto A Tonga da Mironga do Kabuletê. No sinal fechado olhei-me no espelho. Certifiquei-me que estava descabelada e sem batom e filosofei: quem marca melhor o tempo? O relógio ou meu rosto? Passei batom, dei um jeito com as mãos mesmo no cabelo e saí rápido dessa crise metafísica. O relógio, claro que o relógio.