sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O tempo que gostamos de perder não é tempo perdido*.

* Bertrand Russell

Passei bons momentos de minha adolescência na casa de uma amiga em Bento Ribeiro. Lúcia morava numa residência de um só andar com sala, três quartos, um banheiro enorme, uma cozinha onde cabia mesa de seis lugares e ainda sobrava espaço para a gente andar de patins. Havia também uma enorme varanda onde passávamos horas nos balançando numa rede e ignorando por completo a utilidade dos relógios. No quintal, onde havia bananeiras, mangueiras, jabuticabeiras e outras árvores sem sufixo além de muito mato, funcionava uma oficina que era destinada à fabricação de pranchas de surf. Essa era a ocupação do irmão da Lú que, embora, muito mais velho do que ela, recusava-se e amadurecer como os frutos das árvores do seu quintal.

Os anos, como muitos sabem e poucos compreendem, passam. A separação entre os amigos de infância e adolescência, assim como os membros de uma própria família, às vezes, é inevitável. Lú casou-se com Márcio que é piloto da aeronáutica, tem dois filhos e cada ano mora num estado do Brasil. Eu, por outro lado, também me casei, fui multiplicada por três e ando bastante ocupada comigo mesma. A prática da amizade tornou-se complicada assim como a minha frequência na academia, com o diferencial de que esta faz bem para o corpo e aquela, para a mente. Ou ao contrário. Não importa. Ambas, porém, tanto a amizade como a academia, existem independente da quantidade de suor derramado.

A casa da Lú fica no caminho que faço quando levo Nara à escola. E, da mesma forma que nos emocionamos ao sentir um cheiro que nos traz à memória um momento bem vivido ou um período mal desperdiçado, não era raro passar por ali com a velocidade do carro diminuída para que o passado tivesse tempo de tornar-se presente e rir com as histórias que ainda ecoavam nas paredes da casa de Seu Cassiano e Dona Teresinha.

A placa de “vende-se” pegou-me de surpresa. A possível imagem da casa reformada trouxe-me a mesma sensação quando ouço uma música antiga remixada. Eu fico me perguntando porque fazem esse tipo de coisa. Quando vi aquela folha de metal pendurada no portão, pensei em ligar para Seu Cassiano e falar para ele o que gostaria de falar para quem mudou a cadência de uma bela canção. Deixe as minhas lembranças em paz. Não mexa na harmonia entre o que passou e o que insiste em não passar. Por favor.


E como a vida, como muitos já se deram conta, não é fácil já que a maioria das orações não surtem efeito, o que já era opressivo e importuno tornou-se insuportável. Ao passar em frente à casa que tanto me abraçou um dia, deparei-me com a imagem de um trator que agia e avançava e destruía e derrubava e reduzia literalmente tudo tudo tudo a pó.

A melodia não foi alterada como eu imaturamente temia.

A melodia foi aniquilada.

Dias depois, já víamos no terreno vazio sem as árvores, sem a oficina e sem a casa, o preparo para que outras recordações fossem plantadas, polidas e edificadas. Várias casas geminadas estavam sendo construídas formando mais uma vila no subúrbio carioca.

Reencontrei Lú numa festa e, embora não ficamos tanto tempo conversando quanto gostaríamos, percebi que aquele estado melancólico causado pelo desejo de me esticar num tecido de malha suspenso pela força das paredes da casa de Bento Ribeiro não estava diretamente ligado à existência de nada material.  Estranho. No entanto, a música, diferente do que eu esperava, foi tocada tal como ouvíamos "nos tempos idos de outrora". Ficou de repente muito claro que a alegria de um momento trazida pelas mãos da nostalgia não precisa significar somente a saudade de um passado vivido com liberdade. Descomedir-se não é mais possível, mas a dualidade não necessariamente nos dilacera.


                                               Para Lú, Dona Teresinha e Seu Cassiano com muito carinho.




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