Quando se convive com uma pessoa durante muito tempo conseguimos às vezes saber exatamente o que se passa na cabeça do indivíduo que tanto nos acompanha; outras vezes não fazemos nem ideia e, como estamos falando de dois seres, essas situações podem acontecer simultaneamente. Foi exatamente isso o que ocorreu entre mim e meu excelentíssimo marido há um mês atrás.
Estávamos na casa de minha sogra em Mangaratiba nos preparando para dormir. Eu não gosto muito de passar a noite lá porque a casa fica perto de muito mato, colada numa reserva da mata atlântica e onde tem mato tem muitos bichos esquisitos com asas que ao entardecer cismam em nos visitar. Mas no dia seguinte partiríamos para Ilha Grande com as crianças e a barca sai dali pertinho. Eu estava no quarto com Yuki e Nara que já estavam ressonando. Cômodo fresquinho. Ar condicionado no máximo. Eu estava calma. Serena. Deitada. Com o livro de Zélia Gattai nas mãos. De repente, Nelson coloca só a cabeça para dentro e com os olhos esbugalhados fala:
- Não abre esta porta por nada nesse mundo! – E a fechou em seguida me deixando só de novo com as crianças naquele compartimento gelado.
Levantei-me jogando a Zélia pro alto e abri a porta sem demora. Mantive as pernas bambas dentro do quarto e usei somente o rosto para me certificar do que estava acontecendo lá fora.
- Eu não falei para você não abrir? - Rugiu Nelson ainda com os olhos saltando das órbitas ao me ver com a cara assustada no corredor. Empurrou meu rosto para dentro e fechou inutilmente a porta mais uma vez.
Coloquei a boca numa abertura segura de três centímetros.
- O que está havendo? – E imediatamente posicionei minha pupila na brecha agora de meio centímetro. Nelson se aproximava nervoso.
- Me obedece, mulher! Fecha essa porta! – Bramiu rabioso com a minha indisciplina fantasiando uma esposa menos curiosa e mais obediente.
Pela fresta eu vi, com a metade de um olho, Nelson com uma vassoura na mão.
- É bicho? – Perguntei com a voz embargada.
Nelson devia estar querendo me proteger e com receio de que eu desmaiasse, acordasse os vizinhos ou tivesse um piripaque devido a minha insectofobia crônica agia daquela forma bronca. Se ele respondesse sim, é bicho, eu teria fechado a porta e trancado com chave. Na hora! Mas não...surtou.
- É tudo! É tudo!!! Fecha a porta! – E mirou com um misto de ódio e pânico um ponto fixo na sala.
Do meu referencial não era possível ver o que ele estava focando sem piscar. Os nossos campos visuais sofriam a intersecção de uma quina de corredor. Também não era louca de sair dali. Já estava toda arrepiada só de pensar... mas, o que é tudo? Como assim tudo??? Essa resposta foi muito esquisita.
- É réptil? – Indaguei visualizando mentalmente uma perereca.
- É tudo! É tudo!!! Entra, mulher!!!! – Replicou sabendo que eu tenho o maior nervoso de anfíbios. Ele realmente estava muito preocupado em preservar a minha paz já inexistente com aquela resposta insana.
- É inseto? É um besourão??? – Interpelei ao me certificar com meu olho esquerdo grudado numa brechinha de nada que ele estava com a vassoura numa mão e agora com um baigon preto na outra.
Mas por deus! Será que esse homem acredita que se ele não descrever claramente o que está vendo eu vou me acalmar?
- Fecha a pooooooorrrtaaaa! – Bramiu incisivo enquanto sumia por completo do meu campo visual.
Eu obedeci apavorada imaginando meu marido lutando com um bicho muito estranho. Ouvi um barulho seco. Era o som que a vassoura faz quando encontra o chão com muita velocidade e fúria. Mais barulhos de móveis caindo. Dei mais alguns segundos. A minha mão na maçaneta estava só esperando o sinal verde vindo de fora, porém, antes que ele fosse dado eu abri a porta e saí mais branca que ovo bem cozido.
Nelson estava no banheiro dando descarga com cara de nojo. O bicho estava indo embora e eu fui correndo olhar a aberração. Quando mirei o fundo do vaso o nível da água já havia começado a subir.
- O que era, afinal? Um insetão? Um réptil? Mamífero?- Eu também tenho um pouco de medo de ratos. Nelson sabe disso. -Você está bem? – Preocupei-me ao ver a testa brilhosa de meu herói.
- Era tudo! Tudo!!! – disse balançando a cabeça como se dissesse não. – Vamos dormir. – Delirou.
Fui para o quarto. Esperei ele arrumar a bagunça na sala, tomar mais um banho e se deitar ao meu lado. Sabia que seria complicado obter um esclarecimento dos fatos. Nelson tem essa mania de achar que é melhor eu não saber das coisas para eu não sofrer. Ele acredita realmente que eu padecerei menos na escuridão.
Não poderia mostrar muita ansiedade. Em outras situações isso só piorou.
- Meu amor, se você não me falar o que é, eu vou imaginar o pior! – Disse com a voz mansa fazendo cafuné na cabeça rala de meu protetor que acabara de se deitar ao meu lado.
- Era o pior!!! O pior!!! - Replicou imperioso e sem se deixar seduzir pelos meus gestos.
- Caramba, homem! – Impacientei-me. - O que é um bicho que é tudo? Réptil, inseto e mamífero? – E continuei achando que havia falado todas as classes dos animais. - Caraca, Nelsu! Larga de ser chato! Se coloca no meu lugar! Eu não vou deixar você dormir enquanto eu ficar imaginando você lá fora lutando com um orangotango!
Perdi além da paciência o vocabulário e devo ter perdido também todas as aulas de ciências na vida. Nervosa eu sou assim. Raciocino menos do que quando estou fazendo jump. O ponto digno de nota é que muitas vezes meu marido sabe exatamente o que estou pensando e por conta disso, duas coisas acontecem: ele nem se dá mais conta das minhas gafes e fica fazendo esse tipo de coisa achando que é o melhor para mim. Afe.
Mas dessa vez, eu e meu tom de voz o convencemos a esclarecer o que de fato ocorrera ali fora.
- Tá bom. Tá bom, mas depois não reclama! – E sentou-se na cama olhando-me assustado. - Era uma barata desse tamanho! – Exclamou usando as duas mãos para que eu visualizasse o tamanho da criatura. – Satisfeita?
Não. Padeci à luz da verdade. Não dormi visualizando aquele inseto caseiro ortóptero com as dimensões de um cachorro. Antes ele tivesse me contado como foi a briga com o ornitorrinco. Parece que nem me conhece...