Eu estava numa festa, no meio de amigos e o tempo suficiente para que a maioria deles já estivesse sob o efeito ainda agradável do álcool. E eu não bebo. Não porque não queira, não porque acho feio e, muito menos por causa de religião. Não bebo porque não posso. Infelizmente não posso. Minha prima Elise me explicou um dia que é porque eu tenho deficiência de aldolase que é a enzima do fígado que age na segunda etapa da metabolização do álcool. A metade da população japonesa é assim. Sem aldolase. Daí que o subproduto da primeira etapa da metabolização é tóxico e causa taquicardia e vasodilatação. Fico vermelha como um tomate e se alguém colocar a mão na minha cabeça consegue medir meu pulso. É melhor ficar só na coca-cola mesmo.
Há tempos percebo que todos meus amigos quando bebem acabam sempre filosofando. Uns com mais, outros com menos, mas sempre com uma certa profundidade. Depois de um certo momento é fácil encontrar alguém falando olhando para o zero, para si ou para a alma de outrem.
Nessa festa não foi diferente.
Estava eu, então, indo abastecer meu copo de refrigerante quando Ricardinho do Isopor, assim conhecido entre os amigos por participar das nossas rodas de samba acreditando que o encontro de sua mão com o fundo de uma caixa de isopor produz algum som agradável, se colocou na minha frente com um sorriso no qual se via, além de todos os dentes da frente, os sisos. Um troço de doido. Animadíssimo, é claro, perguntou-me:
- Elika, qual é o grande mistério da vida?
Boa. Eu havia falado sobre isso essa semana com a Nara. Disse a ela que eu entendo a teoria da relatividade, mas não há teoria que me explique como algo tão duro como um milho se transforma em algo tão macio como a pipoca. Ao jogar os grãos na panela sinto-me fascinada. Isso não é natural. É sobrenatural, Nara!!!! Mas, não deve ser essa a resposta que Ricardinho esteja querendo ouvir...
Pensei na minha tese que está em vias de elaboração. A inércia! De onde vem essa propriedade dos corpos? Será que vem das estrelas? Enquanto pensava na pergunta contraía os músculos da testa e apertava os olhos tentando lembrar do último artigo que li sobre isso, mas ao retomar o foco para o rosto do Ricardinho do Isopor com os seus olhos esbugalhados e todos os seus dentes ainda a amostra, percebi que ele não estava querendo ouvir sobre a inércia...
Lembrei-me, então, da Santíssima Trindade, do ilusionista que empurra moedas pelo vidro, do Hideo e da Lua que fica grandona às vezes. Não necessariamente nessa ordem. Diante da minha demora, Ricardo me fez outra pergunta na ansiedade de compartilhar o que lhe tirava o sono (ou não, como veremos).
Seguirá na sequência um diálogo sem precedentes na minha vida:
- Você já deixou de pagar alguma conta por esquecimento, Elika? - Perguntou Ricardo para a minha alma.
- Já. - Confessei.
- Como você se sentiu, Elika? – O olhar de Ricardo atingia o meu cerebelo.
- Mal. – Respondi abaixando a cabeça.
- Você já deixou de dar um recado importante, Elika?- Lembrou-me Ricardo, sem nada saber a respeito, do fato d´eu ter quase acabado com um casamento.
- Já. Já. – Respondi com o queixo ainda escondendo meu cordão.
- Como você se sentiu, Elika? – Os sisos do Ricardo não estavam mais visíveis.
- Mal. – Disse após um longo suspiro.
- E se lembrasse dessas coisas um pouco antes de dormir? Admite que isso poderia tirar o seu sono, Elika? – Eu já não via o Ricardo na minha frente. Ele havia se transformado no Voldemort!
- Sim!Sim! Claro que sim!
- Mesmo sabendo que não seria um caso de vida ou morte... você ainda assim !!! ficaria mal, Elika? – UUUrrúúrráááááááááá. Vi os molares de novo.
- Mal. Mal! - Avemariacheiadegraçaosenhoréconvoscobenditosoisvóis...
- O que é uma conta ou um recado diante da certeza de que nós morreremos?- Filosofou.
- ...
- Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará??? Eis o grande mistério da vida.
- ... - Ãããhnn?
Ricardinho mantendo o sorriso após a última pergunta, de repente levantou os braços como se tivesse acabado de ver um gol do flamengo e continuou:
- Nós somos emoção! Tudo é emoção! A vida é emoção!
Quando a porta do banheiro se abriu e ele entrou.
Glub.
Fim de festa. Voltamos para casa. Colocamos um filme para ver e Nelson dormiu antes que o nome do filme aparecesse na tela. Vi o filme todo. Depois peguei meu livro. Li um tanto. Já era tarde. Levantei-me para ver se as crianças estavam cobertas. Voltei a deitar. Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará? Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará? Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará?Como você consegue dormir sabendo que um dia tudo isso acabará?
Foi o fim do grande mistério da vida de Ricardo Cardoso.
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