Ela já era adulta quando eu havia nascido, mas ainda assim foi a minha grande companheira na infância. Enchi, muitas
vezes, meu pequeno regador amarelinho para dar de beber à minha amiga. Nunca brigou comigo nos
momentos em que gravava meu nome, à ponta da faca - pega no piscar de olhos da
mamãe -, em sua pele. Sabíamos que era uma coisa dolorosa, mas necessária, pois
as grandes amizades são seladas sempre com algum ritual super macabro. Foi bem embaixo de seus olhos que papai enterrou Pituca, meu porquinho da índia de muita estimação e foi em seus ombros que eu chorei de soluçar. Aquela mangueira cresceu bem antes de mim e foi em sua sombra que passei os anos mais lentos e ingênuos de minha vida.
Havia
uma piscina de plástico no nosso quintal. Eu mergulhava de olhos abertos com eles virados para o céu e ficava observando - até quando os pulmões aguentassem - aquela cabeleira verde refratada, borrada e muito engraçada. De vez em quando
mamãe mandava cortar aquela juba verdejante. Vinham uns homens com escadas, serras, cordas e luvas. Deixavam o quintal coberto de galhos que nem ficava assim de cabelo
o chão do cuafer da Ivonete, ali na esquina. Minha amiga usava um corte
parecido com o do Michael Jackson quando era criança.
Em
um de seus fortes braços, onde papai pendurou duas cordas e fez um balanço, ela
não se cansava de me ver oscilar para lá e para cá e posso jurar ainda hoje que era
ela quem algumas vezes me balançava. Acho até que posso jurar mais um pouco. Eu pulei
muita corda quando criança porque enquanto ora eu ora a Tata girava a corda
numa extremidade, na outra era ela, a mangueira, quem segurava durante o tempo
em que ora Tata ora eu pulava no meio cantando assim: Um homem bateu em minha
porta e eu aaa-bri. Senhora e senhores, ponha a mão no chão (e a gente colocava
a mão no chão muito rápido mesmo enquanto a corda estava passando lá no alto).
Senhoras e senhores, pule num pé só (daí a gente pulava só com o direito, só
com o direito!!! (agora percebo a falta de sentido e concordância na música)).
Senhoras e senhores, dê uma rodadinha (bem, vocês já entenderam) e vá pro olho
da ruuua-aa-aa! E quem fosse pro olho da rua direitinho podia fazer tudo de novo.
Quando era a Tata a colocar a mão no chão a corda às vezes girava mais rápido. E
eu jurava que não era eu.
Com
um coração que não cabia no tronco, se preocupava muito em segurar os ninhos
bem direitinho como as crianças seguram os pintinhos. E como aqueles que usam o indicador
como um galho onde pousa um passarinho ou uma joaninha, ela vinha me mostrar os
morcegos que dormiam de cabeça para baixo segurando bem firme em uma de suas
ramificações. Sabe aquelas avós de antigamente que faziam biscoitos para nós, os seus
netos? Então, a minha amiga, espelhando-se nelas, preparava com carinho as mais deliciosas mangas-espada
que jamais comi igual em minha vida.
A
mangueira ficou doente quando eu já estava formada e casada. Meus pais, que
ainda moram na mesma casa, tiveram que mandar cortá-la antes que ela caísse de
tão fraca que estava. Hoje vim aqui visitá-los e colocar um pouco Yuki na piscina (agora de fibra) e ao ver o quintal iluminado por esse Sol que
castiga o Rio e a nossa pele no verão, lamentei profundamente como os que perderam um ente querido. Yuki teve que esperar até que o astro-rei baixasse um pouco a bola.
Dei por
mim que nunca mais as cigarras cantaram na casa de mamãe. Os pardais, as rolinhas, as maritacas, os bem-te-vis e até os morcegos que sobrevoavam o meu quintal por uns tempos assim que a árvore - não mais tão bela - foi cortada, parecem que perderam a esperança. Não vi mais ninguém adejando por aqui hoje.
Certifico-me nesse ar severo, quase triste, que todos nós morremos um pouco na sua ausência, minha saudosa amiga.
----------------------
Se esse texto te agradou, você pode gostar também de: