quarta-feira, 17 de outubro de 2012
A Arte e a Ciência
- Mãe, o desenho está bonito? - perguntou o menino de seis aninhos para a mãe que dava aulas de física.
- Está, está lindo, mas está errado. Gotas de chuva são iguais as bolinhas e não assim como o Zé Gotinha com a cabeça afunilada.
- Por que?
Segundos de silêncio para a mãe pensar...
Mais alguns segundos...
O menino olhava para o desenho sem entender que mundo é esse em que as gotinhas de chuva não são como o Zé Gotinha.
(Custava a mãe ter falado para o menino que o desenho estava lindo e ponto final?)
Ok. A mãe pensou em algo.
- Porque as moléculas que formam as gotinhas de chuva dão as mãos de uma forma que a menor quantidade delas fique com as costas de fora pegando vento. E elas só conseguem fazer isso formando uma bolinha perfeitinha! Qualquer outro formato que elas escolhessem teria mais moléculas pegando vento nas costas e isso não é legal como já cansei de te falar.
- Se não a mãe das moleclas briga?
- Exatamente isso, meu filho.
- E a mãe vai dar sopa pras moleclas depois?
- hm hmmm. Isso.
- E vai mandar as moleclas colocarem camisa?
- É.
- E a mãe vai levar as moleclas pra tomar vacina depois, é?
- É.
- E a mãe das moneclas...
-...meu filho, o desenho está lindo!!!!
- Brigado. Mas eu vou fazer um outro com menos moneclas pegando vento.
Entre a ciência e a arte, vivemos aqui com uma inominável terceira opção.
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Mais de nós dois em:
Limpando a cabeça
Biciquétala
A História do Meu Novo Amor
Viver é desenhar sem borracha
sexta-feira, 12 de outubro de 2012
O Sagrado e o Profano
A mãe ouviu ao fundo a voz do pai gritando
com o menino, coisa rara naquela casa, pois o menino que acabara de completar
seis aninhos é muito bonzinho e obediente além de cuidar com carinho de todos
os bichinhos da casa que consistiam em sete peixes, dois hamsters e um
cachorrinho. Querendo saber o que estava acontecendo, a mãe deixou o resto da
louça suja na pia e dirigiu-se para o cômodo da casa onde estavam o pai e o
filho, o primeiro falando ainda de forma exaltada e com voz embargada, o
segundo de cabeça baixa e aparentemente muito envergonhado.
- Você por um acaso... você...por um
acaso... se eu ficasse doente, trocaria de pai? Da onde você tirou essa ideia?
Com quem você tem andado, meu filho? Eu não esperava ouvir isso de você por
toda a educação que nós temos te dado! Isso não é papel de homem, meu filho!
Você quer me matar de desgosto falando uma coisa dessas? Você já viu o seu pai
fazendo esse tipo de coisa por aí?
A mãe, sem ainda saber o motivo daquele
emocionado discurso e sabendo que o pai jamais levantara a voz para criança
daquela forma, como boa cúmplice, virou o rosto tenso para o filho e condenou
com o olhar aquele ato indecoroso do menino. Balançava a cabeça negativamente e
olhava o pai exclamando indignado. Com a mão direita espalmada por cima do
peito esquerdo e com cara de choro, a mãe sentia a dor do pai como se fosse a
dela.
- Vá beber uma água, Nelson. Se acalme,
meu amor. Deixa que eu converso agora com ele, tá? O Kinho não vai fazer isso
de novo, né, Kinho? – Alterou o semblante no mesmo instante em que olhou para o
menino. O menino sabia que a mãe era mulher braba e curvou-se ainda mais de
tanto medo e vergonha.
Nelson saiu do quarto vociferando sozinho
pela casa. Onde erramos com ele? Que horror! Que horror! Isso não existe!!! A
mãe mal se aproximara do menino quando ele começou a falar baixinho e chorando:
- Mãe, desculpa, eu disse pro pai que se
ele mudasse eu ia com ele, que eu não vou deixar nunca o pai sozinho. Eu só
quero ver o pai feliz...descuuuulpa, mãezinha, - soluçava nas vírgulas o menino
arrependido – eu falei, mãezinha, que eu ia com ele... eu não quero ver mais o
pai sofrer, mãe. Eu pensei que ele ia ficar mais feliz se a gente mudasse, mãe!
Me desculpa, mãezinha...
- Ãhn? Mudar pra onde, Jesus? – Perguntou
a mãe sem entender patavinas.
- Pro Fluminense, mãe. O Flamengo só
perde... me desculpa, mãe, me desculpa...
O menino aprendera uma grande lição. Com o sagrado das pessoas não se mexe e que um homem não torce por um time, mas o
consagra e o confunde com a própria consciência que tem de si mesmo.
- Ãhn?
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Despindo Maria Lúcia
Maria Lúcia havia tomado um banho
demorado. Após secar-se, hidratou a pele com óleo de
semente de uva. Perfumou-se. O dia estava lindo e combinava com o seu vestido longo e
estampado. De salto Anabela, levemente maquiada e com uma bolsa grande e estilosa pendurada no ombro direito entrou no seu carro
possante cujo estacionamento era em uma das ruas de Copacabana. Virou a chave na
ignição, ligou o ar condicionado, colocou o novo CD da Marisa Monte, ajeitou os
retrovisores quando foi surpreendida por uma menina suja que batia na janela.
A princípio, Maria Lúcia sem ao
menos saber o que a pobre menina queria, balançou o indicador de um lado para o
outro, intercalando esse gesto com outro meneio negativo quando apontamos o
polegar para baixo. A menina insistiu para que Maria Lúcia abaixasse o vidro e a
moça de pele macia e aromatizada permitiu que somente uma frase passasse por
dois centímetros de sua atenção.
- Posso ir com você até o centro?
– Perguntou Stéphanny que de princesa nem o nome conseguiu ter.
- Queridinha, não estou indo para
a cidade tá, meu bem? – Mentiu com serenidade e de forma espontânea Maria Lúcia
que apesar de ter pronunciado inverdades o fez com carinho - não perceptível
pelo vidro.
Assim, Maria Lúcia saiu da vaga
em que estacionara e em menos de dois minutos estava deslizando pelo asfalto
negro da Avenida Atlântica. A moça cuja pele estava coberta com estampas de
flores partia otimista em direção ao centro da cidade para enfrentar a única
possibilidade umbrosa naquele dia desanuviado: a consulta marcada com o seu
ginecologista.
No entanto, algo aconteceu. O
rosto sujo de Stephanny aparecia no meio dos carros, nos sinais fechados, na
negritude do asfalto. Por que você mentiu, Maria Lucia? Era uma dessas vozes que
parecem ser do além, mas que na verdade são de um grilo-falante. Ora, por que!
Porque eu posso ser assaltada, a menina pode estar armada com um caco de vidro,
roubar meu relógio da Mikael Kors! Ora, Maria Lúcia, não seja ridícula!
Disse o Grilo-falante. Aquela menina lá tinha jeito de quem queria seu relógio?
Por que diabos uma pessoa que pretende assaltar outra pediria carona com tanta
humildade? Mas, Maria Lúcia estava relutante. Mandou o Grilo para os confins do
inferno, pois não havia do que se culpar. A menina poderia muito bem pegar uma
condução. Estava aparentemente bastante saudável para isso.
Como os mais prósperos e
afortunados são insensíveis! Nós todos
que já vimos uma cena semelhante sabemos que Stéphanny não pega ônibus porque não
tem dinheiro algum! A pobre-menina passará o dia todo pedindo esmolas e muitos
nem terão a delicadeza de Maria Lúcia de contar-lhe uma mentira.
E lá seguia Maria Lúcia com o
corpo limpo e a alma lavada, toda dona de si dentro daquele vestido adornado
com flores não cheirosas. Porém, antes mesmo de entrar no túnel, Maria Lúcia não mais se
sentia tão bonita quanto outrora. A roupa lhe parecia muito papagaiada, os
sapatos não combinavam com a estampa do tecido, o batom era vermelho demais...O
que me custava ter dado uma carona a uma menina? Deixa isso pra lá, Maria Lúcia. O mundo
não vai mudar com esse audacioso gesto de caridade! Mas e se essa menina foi a
minha “prova” aqui na Terra? Às vezes pensamos que Deus será claro ao nos
oferecer a redenção e a salvação, mas vai que estamos enganados? Vai que Ele se
disfarça como o Diabo? Vai que Deus queria decidir o meu destino hoje com esse pedido
de carona? Aquela tamanha humildade bem estava me parecendo suspeita... De onde viria? Porra, Maria Lúcia, como
você é burra! Deus é super dissimulado! Aquele pedido de carona era fingimento!
O que Deus queria ao usar aquela máscara era te testar!
Maria Lúcia ficou pálida. O túnel
Rebouças lhe pareceu como o caminho para as profundezas do inferno e ela não
poderia passar por ele de maneira alguma. Pegou o primeiro retorno.
E agora, Maria Lúcia, vai dizer o
que para a menina? Que esqueceu alguma coisa? Que se arrependeu de ter mentido?
E se a fedelha não estiver mais lá, Maria Lúcia? O que será de você?
Stéphanny estava ali perto no
sinal segurando uma moeda de dez centavos mendigando pelos vidros mais moedas
iguais a que firmava entre os dedos. Os motoristas fingiam nada ver.
Maria Lúcia chamou a pequena gritando “Ei, garota! Ei! Vem cá!”. Stéphanny foi até Maria Lúcia que começou a
gaguejar se explicando, dizendo que havia se esquecido para onde ia, que o médico
dela possuía dois consultórios, que ela estava ficando surda e que não havia
entendido direito o que a menina queria, que patati patatá...Stéphanny não parecia interessada em
nada daquilo. Entrou no carro como se já soubesse que a madame voltaria e ficou
o caminho inteiro respondendo com um português todo errado às perguntas de Maria Lúcia. A vida de Stéphanny
daria um outro conto que deixarei para uma outra oportunidade. O ponto é que Maria
Lúcia estava feliz e aliviada em ter ajudado uma coitada desafortunada e
carente, a despeito do carro ter ficado com um odor desagradável mesmo depois da guria ter saído.
O médico deu péssimas notícias à
Maria Lúcia. Ela teria que começar urgentemente uma quimioterapia e, muito em
breve, possivelmente ser submetida a uma mastectomia.
Stéphanny realmente não reconheceu todo o esforço de Maria Lúcia.
Maldita seja.
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