terça-feira, 12 de maio de 2009

À Sombra do Tempo

Devia ter uns dez anos. Na época, eu só tinha dois irmãos e sofria todos os problemas que um filho do meio se destinou a sofrer. Minha irmã ao nascer antes de mim fez com que minha mãe não se emocionasse tanto com a minha chegada. Afinal a maternidade já havia sido desvendada. Meu irmão mais novo, por ter chegado por último e ser homem recebia em dose dupla, a atenção de meus pais. Do papai por ser homem. Parecia até que papai era rei e meu irmão herdaria todo o seu reino. Da mamãe pela proteção excessiva que todas as mães dão para o filho homem, motivo esse dos homens serem tão menos independentes do que as mulheres. Bem mais tarde, doze anos depois para ser mais precisa, nasceu Lili, a temporã. Por ter vindo tão tarde Lili não fez parte de minha infância e, portanto, não faz parte dessa história.

Senti-me desprestigiada em vários momentos de minha infância, nada que um psicólogo e até eu mesma não tirasse de letra como no dia em que ganhamos três porquinhos da índia. Uma espécie de rato, peludo e sem rabo. Uma graça. Mamãe comprou três. Para não ter briga. Minha irmã mais velha, a que nasceu primeiro, falou primeiro, andou primeiro, e fez todas as gracinhas primeiro, chegava primeiro também da escola e foi a primeira a escolher um dos três roedores. Escolheu o mais bonito, um todo colorido e passou-o a chamar de Arco-íris. O meu irmão, o menorzinho, todo fragilzinho até seus vinte e sete anos, o terceiro filho, nesse dia foi o segundo a chegar da escola. Imediatamente escolheu o porquinho que era todo marronzinho, o mais gordinho, e passou-o a chamar de Fofinho. Quando eu cheguei da escola vieram os dois correndo na minha direção, falando alto e ao mesmo tempo me puxando para onde estava a gaiola. Mamãecomprouporquinhos! OmeuéArcoÍris! Vaiver!ÉoFofinho.Correveroseu! Vemcásãotrêsporquinhosfinhoémeu! Eu fiquei animada mesmo sem entender nada do que eles estavam falando. Dizem por aí que a alegria é contagiante e quem sabe seja verdade.

Ao ver os porquinhos da índia fiquei sem palavras. Meus olhos, cuja retina refletia a felicidade, não piscaram durante alguns segundos. Tão logo ouvi a voz doce de minha mãe que falou atrás de mim. Comprei um para cada um. A minha mudez súbita acabou no mesmo segundo. Afinal, na infância, em várias situações, ganha quem gritar primeiro. Aquelealiémeo! Gritei. Não, a Tatiana já escolheu. Aquelealiémeo! Apontei o outro já estranhando o fato de meu irmão não ter gritado ao mesmo tempo que eu. Não, o Toninho escolheu esse. O que havia sobrado era um rato branco, sem rabo com um capuz preto na cabeça. Nem de longe ganharia o concurso de beleza dos porquinhos da índia. Nem sabia que tinha isso, mas Tata fez questão de frisar que o Arco Íris seria o primeiro colocado no concurso de beleza de ratinhos que aconteceria em Massachútis. Como era a mais velha, mais adiantada na escola e coisa e tal, nem discuti.

Não sei porquê pressenti que o bicho que sobrou fosse fêmea. Segurei na mão e disse: você é a mais feia mas é a mais esperta. Esses dois vão se arrepender em não ter te escolhido. E passei a chamá-la de Pituca.

A vontade de mostrar aos meus dois irmãos que quem ri por último ri melhor deu um trabalho danado para Pituca e ocupou muitas tardes da minha vida. Tentei ensinar um punhado de coisas para ela. Coisas que se ensinam para um cachorro e que muitos deles nem conseguem aprender. Senta, Pituca. Deita, Pituca. Rola, Pituca. Rola, Pituca! Ela não aprendeu nada, obviamente. Mas acabou sendo a mais mansinha e a primeira a cheirar a nossa mão quando nos aproximávamos da gaiola. Meus irmãos riam da minha persistência e pelo fato de Pituca engordar sem parar. A chamavam de gorda, cara preta, burra. Na verdade não queriam ofendê-la, eles a adoravam também, mas sentiam prazer em me irritar. Coisa de irmãos. Até que um dia, ao chegar na gaiola, vi Pituca amamentando dois filhotinhos! Ela não estava ficando gorda, ela estava grávida! Os filhotinhos eram horríveis, nojentos, mas eram dois!!! E em cinco dias ficaram bem bonitinhos. Eu era avó de dois porquinhos lindos aos dez anos.

Pituca teve um casal de filhos. O macho, Piteco, logo cresceu e cruzou com a irmã, Peteca. Piteco cruzou com as tias. Sim, tias. Arco íris e Fofinho eram fêmeas também. Piteco também cruzou com Pituca. Não entendi bem essa história mas sei que no final de três semanas meus irmãos também eram avós e eu era avó de novo. Pituca amamentava todos os filhotes. Curiosamente, Arco Íris e Fofinho não tinham a paciência dela e os filhotinhos deles acabavam mamando na Pituca também. Em pouco tempo a gaiola ficou pequena e papai acabou fazendo um cercado no quintal que logo logo ficou pequeno também. Ninguém gostava de limpar aquela sujeira toda e eu me lembro de não ficar incomodada ao fazer esse serviço. Dar comida, trocar o jornal que forrava o chão, botar água… Até gostava. Quando eu chegava com a ração eles faziam um barulhinho e ficavam em pé cheirando o ar. Um barato de ver.

Num Domingo, pela manhã, fui ver os porquinhos e comecei a ficar nervosa pois, por mais que procurasse e chamasse por ela, Pituca não aparecia. Ela sempre era a primeira a aparecer e se aproximar. Entrei em desespero. Como podia Pituca ter fugido? Acabei a encontrando na área de serviço, atrás da máquina de lavar. Fato estranho. Ninguém soube explicar. Mais esquisito ainda é que numa noite, a noite em que passou fora do cercadinho, Pituca emagreceu muito. Ficou fina. Com feitio de peixe. Fiquei apavorada. Ofereci capim e ela nem fez festa como de costume. Desde então não comeu mais nada, bebia só um pouco de água e numa noite, quando fui limpar as casinhas, vi Pituca morta. Dura. Os outros passavam por ela, por cima dela e parecia que nada sentiam. Aquela cena me chocou. Gritei tanto, chorei tão alto que logo apareceram os vizinhos nervosos perguntando o que estava acontecendo. Meus pais tentavam me consolar mas eu só sentia dor. E doía forte o meu peito. Muito forte. Eu queria saber porque de tantos porquinhos no mundo foi ela quem havia morrido. A melhor mãe de todos os porquinhos, a mais carinhosa, a que levantava primeiro quando sentia o cheiro do capim. Minha mãe não me respondia. Dizia somente que papai do céu a levou, mas isso não era resposta. Porque ele a escolhera? Eu tive ódio de papai do céu. Não entendi suas razões e passei a considerá-lo um monstro. Chamá-lo de papai do céu era ofender o meu pai. Meu pai jamais mataria Pituca. Aliás, ele a pegou com cuidado, embrulhou no jornal e a enterrou no pé de nossa mangueira. Perto da raiz. Bem na sombra.

Não quis saber de cuidar mais de rato nenhum. Minha mãe teve que dar todos os outros para uma loja de animais. Mesmo porque já estavam nascendo uns bem deficientes. Fruto daquele crescimento descontrolado.

A Mangueira ficou doente. Uma doença sem cura. Semana passada, meus pais, que ainda moram na mesma casa, tiveram que mandar cortá-la antes que ela caísse de tão fraca que estava. Ao ver luz aonde sempre houve sombra lembrei-me de toda essa história. O tempo passou depressa. Quase trinta anos se passaram. Eu e meus irmãos crescemos e agora temos todos a mesma idade. Certas diferenças o tempo apaga. Já a dor da perda, o sentimento de impotência diante da morte… engraçado… bastou eu enxergar tudo mais claro e voltou.



8 comentários:

  1. Filho do meio sofre mesmo. Todo mundo reclama disso. O mais velho e o mais novo se unem, e imprensam quem esta no meio. Gostei da historia. Dor da perda é dificil.. muito.

    Beijão!!!!!

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  2. Elika essa história atinge várias pessoas. Esses tratamentos dispensados a cada filho deixa sempre marcas e que certos filhos carregam para o resto da vida.Essa impotência diante da morte. As vezes ou na maioria delas a gente não esquece. Foi bom ler teu texto belo cantinho esse.

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  3. Ôi Elika!
    O melhor disso tudo é que você teve jogo de cintura para contornar as situações.
    Aprendeu a amar aqueles bichinho, principalmente a Pituca.
    A dor da perda é difícil mas temos que superá-la!
    Lindo texto!
    Beijos!

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  4. Não sei nem o que lhe falar, sua história me emocionou profundamente. Dor todo mundo tem, mas poucos sabem lidar com ela. Seu texto conseguiu me fazer chorar. Adoro ler seu blog. Um grande abraço. Beijos, Ray.
    (rayanaa_@hotmail.com)

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  5. De fato essa sensação de perda é uma espécie de "amortecedor", para aquelas que sofreremos mais adiante. Eu tive a minha, não com animais de estimação, tive com a minha avó materna. Fiquei uns bons dias inteiramente fora do ar. Não conseguia compreender como isso podia acontecer. E mais, acontecer comigo.
    Esses bichinhos são fantásticos como professores, e nós (incluindo a minha irmã) temos a pretensão de ensiná-los algo (nós tínhamos um cachorrinho que ela - a irmã - teimava ensinar a escrever e ler, e obteve algum sucesso - na opinião dela, claro). É tudo uma ilusão , eles é que nos domesticam os sentimentos. E o texto ? Ficou, como sempre, divertido e bem escrito. Beijos.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. qualquer coisa que você escreva tem uma profundidade pré-salina. vai no âmago.

    quando digo que você é a melhor memorialista que já conheci pessoalmente, tenho certeza do fato.

    beijo de sempre.

    ps: você TEM QUE PUBLICAR!

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  8. Nosssssssa tia Elika, fico encantada com suas histórias e a forma que as expõem. Está maravilhosamente perfeita.
    Realmente a dor da perda é horrível, porém através dela aprendemos a dar valor as coisas e as pessoas, é claro.
    Beijoos.

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