domingo, 13 de setembro de 2009

Luciene

Esse texto funcionou como uma terapia para mim. Semana passada fiz exame de vista e constatei que minha miopia havia aumentado. Cheguei a 6,5 graus! O médico falou que ela ainda deve aumentar. Na mesma semana marquei uma audiometria e o resultado também foi assustador.

Luciene me mostrou que mesmo que eu fique cega e surda, a vida ainda pode ser divertidíssima.

Luciene nasceu assim, perfeitinha. Era a segunda filha de um casal que teve quatro filhos. Teve uma infância feliz. Foi criada numa casa no subúrbio carioca que possuía um quintal bem grande refrescado pela sombra de uma belíssima mangueira. Teve cachorro, coelho, hamster, porquinhos da índia, mas nunca passarinho. Luciene achava que passarinho na gaiola era triste, mas morria de rir ao ver o seu hamster correndo sem sair do lugar na roda girante. Colecionava selos, papel de carta e brincava com bonecas de papel.

Luciene era super saudável quase nunca ficava doente, mas ao nadar na praia do Leblon com seus nove anos contraiu hepatite. Ficou amarela, vomitou muito e teve que ficar deitada durante um mês. Quando ouviu do médico que não poderia comer batata frita Luciene preferiu a morte. Deixou o altruísmo de lado que tanto pregava e fez a mãe prometer que enquanto ela estivesse doente nenhum irmão comeria batata frita também. Luciene se sentiu melhor quando a mãe disse que sim com a cabeça.

Quando começou a estudar tinha dois graus de miopia e vergonha de usar óculos, era uma das melhores alunas, freqüentava a Igreja todos os Domingos, estudava piano, mas para desespero de seus pais os hormônios da adolescência mudaram drasticamente esse quadro. Luciene tornou-se, assim, digamos, da pá virada. Sua mãe enlouquecia diariamente com as besteiras que Luciene falava que ia fazer. Luciene dizia que não queria mais estudar, que queria trabalhar e ser independente aos 14 anos de idade. Queria ser dona do próprio nariz. Lia Roberto Freire, Paulo Coelho e nem piscava com as histórias da Agatha Christie. Achava Renato Russo o máximo e Fábio Júnior um pão. Ficou assustada com a morte de Cazuza e começou a usar lentes de contato. Luciene riu quando viu uma mulher comendo maçã na janela do quinto andar na Ernani Cardoso. Luciene começava a perceber como o mundo é cheio de detalhes.

Ficou em recuperação na sétima série, repetiu a oitava, mas mesmo assim ganhou um violão dos pais de Natal. Disse que ele era tudo o que queria na vida. Desistiu de estudar piano e nunca estudou violão. Luciene conheceu Nilton (aquele que seria seu marido dez anos depois) quando cursou pela primeira vez a oitava série. Como tinha certeza que havia achado o seu príncipe aos quinze anos de idade, Luciene relaxou e gozou. Quando estavam juntos Luciene dizia para todos que iam assim ficar para sempre. Todas as vezes que brigavam Luciene dizia que nunca mais o veria. Quantas vezes eles se separaram Luciene perdeu a conta.

Aos dezesseis anos voltou a ser uma das melhores alunas. Estudava francês às terças e quintas na Abolição na casa de um professor que também sabia latim, italiano e inglês. Luciene gostava de estudar francês e da casa do professor cuja cor das paredes nunca soube qual era, pois, eram todas revestidas de livros. Luciene roubou três livros do professor. Um do Carlos Drummond, outro do Ziraldo e um chamado Brasil Nunca Mais. Luciene ficou assustada com tudo o que leu.

O ponto de ônibus onde pegava condução para voltar para casa do curso de francês ficava em frente a uma Igreja evangélica. Luciene entrou e participou do culto. Na quinta-feira disse para a mãe que chegaria mais tarde, pois, queria conversar com o pastor. Luciene se revoltou com o que viu.

Luciene cursou física e na faculdade conheceu Gustavo. Achou Gustavo bonito e inteligente e tentou esquecer Nilton. Luciene engravidou de Gustavo e não esqueceu Nilton. Luciene teve dificuldades para contar para os seus pais que estava esperando neném com dezenove anos de idade, mas achou que não fosse ter forças para contar ao Nilton que estava noiva de Gustavo. Luciene chorou por não saber o que fazer.

Casou-se com Nilton três anos depois do neném de Luciene ter nascido, mas com sete meses de gravidez já haviam voltado o namoro. Tinha quatro graus de miopia. Luciene dizia que ficariam juntos para sempre. Luciene fez Gustavo sofrer.

Luciene recebeu uma proposta para fazer mestrado, mas teve que recusar, pois, estava grávida do segundo filho. Luciene trabalhava muito e cuidava de sua família. Teve uma inflamação séria na córnea que quase a cegou do olho esquerdo. Luciene passou a usar óculos com medo de se machucar de novo com lentes de contato. Separou-se de Nilton quando seu segundo filho estava com um ano. Achou que nunca mais veria Nilton. Luciene foi para Fortaleza com seu filho mais novo e sua irmã caçula. Luciene mandou um email para Nilton de Fortaleza.

Compraram uma casa de quatro quartos e um cachorro. Luciene resolveu fazer mestrado e ainda gostava de Fábio Júnior. No meio do mestrado engravidou do terceiro filho, passou num concurso público e estava com cinco graus de miopia. Luciene não ouvia seu terceiro filho chorar e nem o telefone tocar. Nilton pensou que Luciene estava muito concentrada nos estudos. Luciene foi ao médico. O resultado da audiometria de Luciene não foi bom.

Com menos de trinta e cinco anos de idade Luciene descobriu que havia perdido grande parte da audição e que nada poderia fazer para recuperar. O problema de Luciene era genético. A avó de Luciene era surda. A perda aumentaria exponencialmente com o passar dos anos. Luciene não deu ouvidos para o que o médico falou. Resolveu fazer doutorado e escreveu um livro. Luciene lia cada vez mais. Entrou para aula de italiano e descobriu que estava com sete graus de miopia. Começou a escrever crônicas e aprendeu a desenhar com lápis de cor. Ouvia Chico Buarque em italiano no volume máximo. Luciene passou a tomar decisões sozinha e sofria sempre com as conseqüências. Os amigos se perguntavam porque Luciene não mais os ouvia. Luciene vendeu o carro para comprar os aparelhos auditivos.

Luciene sentiu algo estranho quando colocou os aparelhos nos ouvidos pela primeira vez. Eles eram imperceptíveis, mas Luciene não prendeu mais os cabelos. Quando tomava banho Luciene tinha que tirá-los, mas também ficava sem eles quando lia. Luciene não queria ir à Itália de óculos e aparelhos nos ouvidos. Luciene resolveu operar a vista.

Luciene ficou indiferente à luz que recebia.

Seus olhos infeccionaram no pós-operatório e Luciene ficou cega.

Desistiu do seu curso de doutorado.

Luciene agora só queria ouvir os seus filhos. Passou a compreendê-los bem mais e participar muito mais de suas vidas. Seu segundo filho sempre teve dificuldades em história na escola e, depois que Luciene ficou cega, ele passou a ler o livro para Luciene que o interrompia sempre pedindo explicações. Agora ele diz que quer ser professor de história e só tira dez nessa matéria. Luciene cantava também com o filho mais velho que tocava violão. Passou a perceber quando ele errava uma nota e a ajudá-lo nas aulas de canto. Contava muitas histórias para o filho mais novo que adorava ouvi-las. Luciene amava conversar com Nilton que dizia que ela ficava muito bonita com óculos escuros. Luciene ouvia cada vez menos Fábio Júnior.

Luciene estava com quarenta anos quando os aparelhos auditivos foram ajustados ao grau máximo que se destinava. Luciene aprendeu cozinhar, a fazer esculturas, tricô, massagens, origami e ler Braille. O limite de freqüências audíveis estava cada vez menor para Luciene.

Luciene ficou completamente surda aos quarenta e cinco anos.

Luciene se lembrou quando não pôde comer batata-frita e lamentou o fato de não saber mais rezar.

Mas foi só com cinqüenta anos que Luciene chorou. De alegria.

Foi colocado pela primeira vez em seu colo o seu primeiro neto.

Luciene percebeu na primeira troca de fraldas que na verdade era avó de uma netinha. Luciene foi a avó mais carinhosa que uma criança pode ter. Não desgrudou dela um só minuto. Luciene teve quatro netos e todas as noras a queriam como babá. As festas de seus netos eram sempre decoradas com os origamis de Luciene. Nilton ficava muito orgulhoso e a abraçava com muito mais freqüência.

Luciene inventou um jeito especial de se comunicar com a gente. Cada parte do corpo que é tocado tem um significado. Podemos ficar horas conversando com Luciene. Exatamente agora a vovó está fazendo brigadeiro para o seu neto mais novo que tem quatro anos. O seu segundo neto quer ser escultor. Cláudio só quer saber de jogar bola por enquanto e eu, a primeira neta, quero ser escritora como minha avó já foi um dia.

13 de Setembro de 2040

11 comentários:

  1. Elika!
    Que bela história, viajei nessa estrada da vida!
    Uma trilha um pouco dolorosa mas mas com muita emoção.
    Parabéns
    minha amiga!

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  2. Oi, Elika,

    Realmente você tem o dom de escrever histórias!

    Beijos, Elise.

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  3. Interessante, minha irmã, muito interessante. Mais interessante ainda o final da história. Essa Luciene num divã ia ter muita coisa para contar. Parabéns pelo texto.

    beijos

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  4. Elika,
    Esse seu conto me trouxe a exata sensação que a gente tem quando olha o(a) filho(a) pré-adolescente se arrumando. Todo aquele ritual na frente do espelho. Fica muitomuitomuito claro o contraste: de um lado, tanta intensidade, vulnerabilidade, paixão...isso tudo contra o corte do tempo, da monotonia, da perda...
    Dá uma vontade enorme de gritar e avisar: Olha que a vida não é assim não! A vida...
    Mas, por sorte, ele(a) já saiu e vai lá no meio da rua, no meio do Mundo: -Tchau, pai!
    O seu conto pega esse sentimento, multiplica por um zilhão e joga de volta pra gente.
    Claro que toda boa literatura sacode o leitor.
    Mas caramba, Elika, esse me jogou no chão!! Literalmente!
    Mostra cada detalhe tão pessoal, tão precioso e sem dar nem um momento pra respirar e sem piedade, lá vem o danado do corte do tempo ("A vida não é assim não!"). Mistura isso durante o texto todo e com tamanha beleza que dá uma vontade enorme de pegar a mão da Luciene...
    Dá uma vontade enorme de ser o Nilton...
    De ser o Gustavo,
    Ou um dos netos, quem sabe...
    Mas a Luciene, é claro, já vai longe. Lá no meio da rua, no meio do mundo...

    Parabéns, Elika.

    Assis Dutra, Niteroi RJ

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  5. Elika andava eu no escuro com certeza. Porque não vim aqui antes?
    O Assis Dutra comenta perfeitamente essa história. Perfeita digna do seu talento. Um abraço e somos amigos no Orkut.

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  6. Passei a ser seguido desse espaço maravilhoso.

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  7. O verdadeiro caminho se encontra dentro coração. Saber ler, poder ler, saber escutar, poder escutar,tudo isso é absolutamente relativo quando o coração está no comando.
    Isto é extremamente raro nos dias de hoje, pertecemos à comunidade do "ninguém está nem aí", e afundamos em um pragmatismo meio bobo, com algumas exceções e a Luciene é uma delas. Você é outra, pela sensibilidade de ver aquilo que não vemos, e ouvir aquilo que não conseguimos e não há médico que resolva este problema, só a escritora. Beijos e parabéns.

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  8. Poucas vezes me emocionei tanto com um blog. Emocionante e lindamente escrito.
    Vou passar sempre por aqui.
    Parabéns!

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  9. Parabéns minha irmã! Belíssimo texto, mais ainda para as pessoas que conhecem a história de Luciene de perto.
    Mas acho que Luciene vai ter visão e audição por mais tempo ;-)
    Bjão!

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  10. Elika, otima essa história
    E me parece bem familiar, espero que o futuro de Luciene nao seja assim, pelo menos
    que ela possa enxergar e ouvir =D
    E que continue escrevendo bastante,
    pq ela faz isso muito bem.
    Beijos

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  11. Tia Elikaaaa... volteii.
    Depois de um bom tempo sem passar por aqui estou aqui de volta pra ver tudo que perdi.
    Voltando justo nessa história muito bem escrita.
    Parabéns mais uma vez.
    Vou ver tudo que perdi esse tempo todo.

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