segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O que será que meu pé está me dizendo?



Rio, 17 de Setembro de 2009

Já sabia desde ontem que hoje o dia seria difícil. Antes de sair de casa tratei de por a caixa de Neosaldina na bolsa. Lá pelas três da tarde certamente um comprimido seria subtraído. Marido embarcado, meus pais viajando e eu aqui com três crianças, duas casas para olhar (papai só viajou com mamãe na condição d’eu aguar as plantas, colocar cloro na piscina, pegar as cartas, revistas e jornais, cuidar da Hanna e alguém dormir lá) e a minha vida tendo que seguir normalmente.

Nara faz teatro, inglês, piano e estuda no sexto ano. Eu faço italiano, doutorado, sou professora e tenho mais dois filhos além dela. Tive que levá-la e trazê-la do teatro, do inglês, do piano e da escola e não podia perder as aulas de italiano, deixar de dar aula e me encontrar com o orientador. Além de aguar as plantas, colocar cloro na piscina, pegar as cartas, cuidar da Hanna e dar atenção ao restante da prole. O pior é ter coincidido com a semana de fazer mão e pé. O pé é que me matou.

Hoje não teve jeito, tive que pedir ajuda ao meu vizinho para levar Nara a escola. Aqui em Madureira é assim: podemos contar com a ajuda, a oração e a fumaça de nossos vizinhos. Dona Jurema sempre que defuma a casa dela deixa um pouco de fumaça entrar na minha, diz que mesmo que eu não acredite, ela faz questão de purificar a minha casa também. Umas duas vezes por semana, meu cafofo fica com o maior cheiro de macumba. Já dona Nilce gosta de colocar a Ave Maria bem alto todas as manhãs. Diz que mesmo que eu não acredite, ouvir a Ave Maria só me faz bem. Sendo cercada de vizinhos que se preocupam tanto comigo, na hora do aperto são os primeiros a serem lembrados. Seu Ivaldo, não tenho a quem recorrer... O senhor pode levar a Nara hoje na escola para mim para eu poder trabalhar? Com o maior prazer, minha filha! Seu Ivaldo é assim, parece que foi feito de açúcar. De quebra levou Yuki para passear.

A minha aula termina meio dia e trinta, encontro com o orientador uma hora na UERJ, uma hora de conversa prevista, depois tenho que entregar dois livros no CBPF, lá na Urca, antes das três e meia tenho que chegar em casa para dar tempo de Marilene fazer a mão e o pé (!) e sair a tempo de buscar Nara na escola e levá-la ao piano. Vai dar tudo certo. Tem que dar tudo certo.

Quando saí da sala no último tempo de aula recebi uma mensagem pelo celular. “Eka, quer ver uma coisa super engraçada? Liga para a mamãe agora. Bjs Lyli”. Ótimo, nada como rir num dia tenso. Imediatamente liguei para os pombinhos em Lua de Mel. Alô, pai! E aí, curtindo muito? Ah, que bom! Lyli me falou que vocês têm algo para me contar que eu vou rir... Papai não estava lá com nenhuma voz de estar achando nada engraçado mas passou imediatamente para a minha mãe. Alô, mãe, tudo bem? Elika? Kkkkkkk (Kkkkkk é minha mãe rindo) o seu pakkkkkkkk está brabo comigkkkkkkkkkk! Estamos conhecendo as vinícolas aqui do sukkkkkkkkkkk. Resumindo, em cada vinícola que paravam, mamãe experimentava o vinho que elas produziam. Resultado? Essa alegria desmedida. Enquanto ouvia mamãe tentando falar já estava a caminho da UERJ. Almocei hoje as risadas de mamãe.

A conversa com o orientador foi tranquila. Chegamos à conclusão que eu só tenho que ler mais uns seis livros antes de fazer a prova de seleção e acionar um plano B. Saí de lá não sem antes engolir um comprimido. Tudo bem. Estava tudo como havia previsto.

O que não estava no script do programa foi eu não encontrar rápido uma vaga aos arredores do CBPF. Cheguei à rua e dei uma piscadinha para o flanelinha com os faróis pedindo vaga. Ele ficou juntando e afastando os dedos de uma só mão com cara de quem pede desculpas. Não havia vagas... Ok, vou dar mais uma volta. Desliguei o rádio. Nunca entendi porque não consigo procurar uma vaga com o rádio ligado. Dei mais duas voltas no mesmo quarteirão quando o flanelinha me parou. Moça, encosta ali naquele ponto de ônibus com o pisca-alerta ligado. Enquanto a senhora dá essa volta sempre sai um carro. Obedeci. Abri a janela.Esperei um minuto e quarenta segundos. As pernas estavam balançando. Será que vai sair alguém? Perguntei ao flanelinha tendo a sensação de que nunca mais as pessoas sairiam de onde estavam. Sempre sai. Respondeu o flanelinha tendo a certeza de que eu não estava raciocinando. Mais um minuto e quinze segundos. Pior, moço, sabe?, o que eu tenho que fazer é tão rapidinho ... Aonde a senhora vai? Vou ali, entregar uns livros no CBPF. Falei com cara de choro já acreditando que terminaria o dia com o meu pé cheio de cutículas e calos. Faz o seguinte, deixa a chave comigo que se precisar eu manobro para a senhora. É rapidinho mesmo, né?

Por um motivo mais do que justo e explicado não pensei duas vezes. Entreguei a chave, peguei os livros e saí correndo. Somente no elevador dei conta do que havia acabado de fazer e entrei em pânico. Comecei a ouvir todo mundo me dizendo: Como você é burra! Não lê os jornais? Você veio da roça? Não ouve rádio? Como você confia assim em um flanelinha? Aimeodeos, e se o moço roubar meu carro... Não vai dar tempo de fazer nem a mão! Como pude fazer isso? E a Nara? Vou ter que ligar e pedir socorro ao seu Ivaldo de novo! Onde estava com a cabeça? Mania minha de sair confiando em todo mundo! Será que já não é tempo de crescer e amadurecer? Papai vai me matar quando souber que eu confiei num estranho...

Entrei na Biblioteca, disse à moça que era só para entregar os livros e voei na janela para ver a rua. Está preocupada com o carro, senhora? Ah sim, deixei a chave na mão do flanelinha. A senhora fez isso? Não lê os jornais? Você veio da roça? Não ouve rádio? Como você confia assim em um flanelinha? Olha, moça, se a senhora for um pouco mais rápida talvez dê tempo d’eu desfazer tudo isso e a felicidade continuar a existir para mim.

Assinei sem ler nada uns papéis que a moça-slow-motion me deu e desci pelas escadas com uma aceleração de dez metros por segundo ao quadrado. Se o carro estiver lá vou dar cem reais ao moço bonzinho. Fiz essa promessa sabe Deus para quem. Saí correndo pela rua, torci o pé e me aproximei do flanelinha pulando como um saci apostando corrida. Se machucou, moça? O flanelinha me perguntou se dirigindo rápido e assustado na minha direção para me ajudar. Depois me acompanhou até o carro e me disse: vou tirar o talão para a senhora poder estacionar em qualquer outro lugar hoje sem pagar nada. Dei os três reais do talão e sorri, a ponto das minhas orelhas se mexerem e meus olhos ficarem somente vinte por cento abertos para o moço bonzinho que deve ter se assustado com o que viu. É melhor a senhora ir andando...

Marilene se atrasou. Terminei o dia somente com as unhas das mãos pintadas, estranhamente feliz e aliviada, mas com uma sensação de que do dia de hoje posso tirar uma grande lição. Essa dorzinha chata no pé torcido e esse bando de cutícula nos dedos dos pés parecem estar querendo me dizer alguma coisa... Bom, deixa isso pra lá.




------------------------------------------------------------------------

Parágrafo excluído:


Voltando para casa liguei o rádio, coloquei o CD de Toquinho e cantamos juntos bem alto A Tonga da Mironga do Kabuletê. No sinal fechado olhei-me no espelho. Certifiquei-me que estava descabelada e sem batom e filosofei: quem marca melhor o tempo? O relógio ou meu rosto? Passei batom, dei um jeito com as mãos mesmo no cabelo e saí rápido dessa crise metafísica. O relógio, claro que o relógio.


22 comentários:

  1. Aconteceu episódio semelhante comigo no mercadão (Mercado Municipal). Ao chegar e ver a geléia geral do tráfego e do estacionamento, escolhi o flanelinha e deixei a chave. Após me safar das tentativas de homicídio da minha mulher, pelo furto do carro, consegui pegar alguma informação do crédito do rapaz, e positiva. Encontrei o carro, sem precisar da promessa, apenas ouvi alguma reclamação: " qualquer dia desses..."
    Mas para acrescentar, consigo achar vaga ouvindo rádio, e o meu pé não mandou nenhuma mensagem até agora, mas a minha mulher ....
    Beijos.

    ResponderExcluir
  2. olá! O que é um flanelinha? sou português...beijos. as melhoras do pé!

    ResponderExcluir
  3. Caro Anônimo,

    "Flanelinha" é uma pessoa com um pedaço de pano, vulgo flanela, cobrando uma mísera gorjeta de R$ 1.134.123,78 pelo serviço. Os flanelinhas se originaram na Idade da Pedra, a partir da necessidade de Fred Flinston e outros personagens não saberem estacionar seus carros, pois o retrovisor ainda não existia.

    Alguns flanelinhas tem serviço V.I.P. no qual eles se oferecem para cuidar do carro até que seu dono volte. Esse serviço é totalmente seguro e confiável, a prova de furtos e arrombamentos efetuados pelos flanelinhas, quer dizer, por ladrões que circulam no local.

    Mestres na baliza e na perícia, usam a força da mente para guiar o motorista à sua vaga. Guiam qualquer tipo de carros, ônibus, caminhões, tanques de guerra, navios, aviões, foguetes, satélites, ônibus espaciais, submarinos, megazords, discos voadores, entre outros. Os flanelinhas não têm local específico de trabalho. Eles podem encontrar-se tanto em estacionamentos, como na rua, ou em parques, e andam sempre em bando. Se você vai a determinado evento em alguma rua, parque ou que possua estacionamento, tenha certeza que você irá encontrar um.

    Espero ter ajudado.

    ResponderExcluir
  4. Tanto texto para duas palavras só, mas agradeço a explicação...então é o que nós chamamos de " arrumador de carros ". beijos

    ResponderExcluir
  5. Elika,
    Você consegue se superar a cada parágrafo.

    Este texto está simplesmente perfeito. Digno dos maiores cronistas daqui das terras Tupiniquim-Brazilis. Não podia ser por menos, pois você já está neste time há muito tempo.

    Voltando ao texto. Está sublime, a história vertical é maravilhosa e as horizontais que foram surgindo pelo caminho estão na medida certa, com uma finalização que não dá para se alterar um vírgula. (e olha que vírgula não era o seu forte.)

    Não satisfeita disso, ainda coloca um parágrafo excluído maravilhoso. O quê que é isso?, Meudeusdocéu!

    E ainda não satisfeita, responde ao comentário do colega lusitano com uma criatividade quase que improvável.

    Me orgulho cada vez mais de você.

    Beijos

    ResponderExcluir
  6. Tenho ouvido e já percebido que quando nos reunimos para compartilhar fraternidade, boas aspirações, nobres desejos, somos envolvidos por um tipo de "atmosfera" , que favorece a aproximação de inteligências especiais que nos inundam de fluidos também especiais que nos confortam e nos suprem as necessidades mais inconscientes.
    O espectro eletromagnético,sabemos, é mais amplo do que o que denominamos visível. Há energias que, por enquanto ,só são percebidas pelos aparelhos naturais mais fantásticos existentes, que são os seres vivos, e dentre eles os mais incríveis somos nós os seres humanos em estado de harmonia,
    como o do dia(momento) por você referido.

    Outros beijos,

    Mendes.

    ResponderExcluir
  7. Cara Elika, confesso haver cansado - não do texto - mas do seu dia. O texto está perfeito.
    Abraços, Pedro.

    ResponderExcluir
  8. Japon,tomara que toda essa criatividade e "energia" continue a nos proporcionar textos tão brilhantes como esse. bjs

    ResponderExcluir
  9. Élika

    Suas histórias são lidas por mim e pela minha esposa. Fazem parte do nosso momento de inteligência durante o dia. Nos deliciamos com cada frase.Você é brilhante.Primo Marcos.

    ResponderExcluir
  10. Mãe não tenho palavras! O que dizer quando sua mãe é uma artista?Ou melhor, escritora! Na verdade os dois! É um orgulho ter você como mãe!!!
    Te amo muuito!
    Bjs Nara!

    ResponderExcluir
  11. Muito bom.
    Parabéns pelo texto. Você leva jeito. hehehehe
    Depois é só editar esse blog que vai dar um bom livro.

    Abraço,
    Wagner Souza

    ResponderExcluir
  12. Então era isso que vc estava fazendo quando eu te mandei a msg? Rsrsrsrs! Que bom que a risada embriagada da mamãe adoçou seu dia!

    Excelente texto! Bjinhos!

    ResponderExcluir
  13. Cláudia, quem é Cláudia??
    Sou eu, Lyli!!!

    ResponderExcluir
  14. Elika,
    Parabeens pelo texto que escreveu
    e da pra perceber que é beu o seu estilo de vida
    uma maneira meio louca e impulsiva de viver, rsrs
    Bem bacana isso
    Parabens por tudo, otimo texto
    Beijos

    ResponderExcluir
  15. Muito bom o texto, adorei!

    Prof. vc mora em madureiraa?/ \o/

    ResponderExcluir
  16. Sim, janaina, moro em Madureira, não vou dizer que com o maior orgulho que aí seria demais. Mas posso garantir que aqui a felicidade existe.

    Grande beijo

    ResponderExcluir
  17. hahahahah
    ah mas que saudade de passar por aqui!
    achei muito divertido seu texto, Elika! E mesmo não tendo filhos, carro, nem estar fazendo um doutorado... tem dias que eu tbm me sinto assim: tenho que colocar muitos comprimidos pra dor de cabeça na bolsa...
    bjinhos

    ResponderExcluir
  18. Professora, o texto está maravilhoso. Você brinca com as palavras e elas dançam com você em uma sintonia incrível.
    Parabéns pelo blog prof !
    Beijos ;*

    ResponderExcluir
  19. Oi, Elika!

    Quanto tempo! Adorei rever você em seu blog: você escreve com estilo ágil e divertido! E parabéns pela publicação do livro. Fico imaginando que você deve ter uma grande habilidade em administrar seu tempo, pois cuidar de crianças, dar e preparar aulas, escrever livro, fazer doutorado e atualizar blog (além de tudo mais) não é tarefa fácil. É o que os nossos pais chamam de “matar um leão por dia”. As situações do cotidiano urbano que você descreveu naquele dia são muito familiares para mim, pois também vivo tendo dias movimentados como aquele, em que acordamos pensando em como vamos dar conta de tanta conta e à noite voltamos para a cama com o pensamento pouco consolador de que no dia seguinte vai começar tuuudo de novo... É isso aí... temos mais é que rir das nossas dificuldades e levar a vida na esportiva. Quanto a mim, estou casado com a Betania há 8 anos e tenho uma filha de 3, a Júlia. Trabalho como clínico e Geriatra no Hospital do Fundão, no consultório particular e como voluntário em um abrigo de idosos. Depois de algumas pós-graduações e de muito adiar, agora é que estou fazendo finalmente meu mestrado. Mesmo sem ser professor, acabo também atuando como tal, pois faço preceptoria de estudantes de medicina da UFRJ ao ingressarem no ciclo profissional, no 3º. ano.

    Guardo com muito carinho a lembrança dos tempos do colégio e a de amigos como você.

    Um grande beijo para você e sua família.

    Leonam

    ResponderExcluir
  20. olá menina, contando assim e cantando como vc faz parece pluma, mas é um belo cotidiano e mágico para caber tanto em tão pouco tempo, arrebenta coração e cuidado, muito. Respira fundo quando bater o stress. Adorei os vizinhos, hj nãos os tenho assim ,mas um dia já curti demais. Paz e enrgia para tí.

    ResponderExcluir
  21. Élika, você é minha ídola. É admirável como você conseguiu dar conta de todos os seus afazeres e ainda de uma maneira tão bem humorada! Como , também tenho três filhos e também trabalho fora,vou sempre me inspirar em você. Não é fácil a vida de uma mulher que é mãe, trabalha fora e ainda estuda. A sua energia é contagiante! Parabéns!

    ResponderExcluir
  22. NOssa que história fantaásticaaa. E principalmente, a forma como vc escreve. Dando leveza as palavras e usando-a maravilhosamente.

    Parabéns mais uma vez, não canso de dizer isso.
    Vc realmente é um exemplo de vida!
    Me orgulho de ter tido vc como professora.
    Beijos.

    ResponderExcluir