sábado, 12 de junho de 2010

O Grito


Houve um pesadelo. Acordada, ainda em prantos, senti mais medo do que nunca, pois experimentei na pele uma dor que julgava há tempos ser insuportável. Já estava amanhecendo e aos poucos tive que me levantar. Reerguer-me para acordar as crianças.

Houve desespero a ponto de fazer-me tentar rezar. Inutilmente. Cancelei a consulta com o analista não por covardia. Pelo contrário. Já que a morfina da oração não funcionaria, que o sofrimento viesse à tona sem interferências. A sós. Como o próprio pesadelo. Precisava buscar o refúgio e o calor em nenhum outro lugar senão nas minhas próprias reflexões e enfim, organizar-me dentro de mim. Se houvesse aqui em casa uma janela com alguma paisagem bonita não enxergaria a quantidade de coisas que ouviria de mim mesma ao apoiar meus cotovelos no parapeito e sustentar meu rosto com as mãos. Talvez ajudasse, no entanto, a ouvir-me mais. De repente é melhor que esta janela não exista.

Houve a cena de um filme dois dias após o pesadelo. Robert de Niro fazia o papel de um viúvo e pai de quatro filhos que moravam em lugares diferentes neste mundo. O filme era o pai solitário buscando um reencontro com a família que lhe restara. Aparentemente a realização dessa simples e agigantada vontade escapulia do futuro como um peixe vivo nos escapa das mãos. Inquietei-me parecendo um asmático em crise. Não sabia que ainda estava perdida, pois não sentia nada que se assemelhasse a infelicidade. Longe disso. Veio, porém, o choro descontrolado bem no meio do filme por viver plenamente feliz. Por sentir-me no vértice de um triângulo isósceles e simplesmente saber que a base existe. A base do triângulo é o meu pesadelo.

Houve, quatro dias após, o deslumbre da foto de meu sogro que eu jamais conheci . Algumas lágrimas retidas a toda força por meu marido durante todos os anos que engoliu a ausência cruel de seu pai escaparam pelos meus olhos. Tanta coisa tive vontade de falar para um retrato. Eu parecia estar a ponto de rever uma grande amiga que mora longe. Queria mostrar meus filhos, dizer que estou tentando emagrecer, apresentar meu pai, falar que sou o vértice do triângulo isósceles...que fossem apenas dois minutos de convivência! Eu precisava conseguir rezar... a dor estava se tornando insuportável.

Houve, como se não bastasse, os contos da Clarice Lispector, a voz de Renato Russo, Leibniz e a queda de temperatura típica nos meses de junho. Parecia que nada me fazia desviar daquela torrente.

Houve a consulta ao analista onde tudo foi contado sem peso. A força da gravidade nas palavras foi propositalmente enfraquecida. Camuflei-me para o profissional, pois já era hora de distrair-me. Com urgência.

Houve, enfim, a despedida com o meu inconsciente e o reencontro, já em tempo, com a minha miopia. Zélia Gattai, Lie to Me, Friends, Maurício de Sousa, abertura da Copa, reforma no banheiro e galeto na brasa com muita farofa. Visita de sobrinha e irmã que moram longe, aniversários de amigos, dia dos namorados, muito trabalho, cinco taças de vinho e a volta a atividade física. Fui apresentada ao Ítalo Calvino nas aulas de italiano, dancei sozinha La Gatta de Gino Paoli e vi um assalto. Vi também Julia & Julie, continuei sem falar nada nas aulas de filosofia e esbocei alguns desenhos (nas aulas de filosofia). Visitei os bichos no jardim zoológico. Descobri o sabor de morango com Nutella e mostrei para Nara, para o Yuki, para o Hideo e para o Nelson o que era aquilo. Minha irmã pulou de parapente.

Houve, talvez, a oração. Numa queda vertical olha eu aqui vivinha. Talvez eu deva ser mais sincera na terapia, talvez eu deva procurar uma janela com uma bela paisagem, talvez. Tenho dúvidas, porém, se é válida uma outra tentativa de encontro. Quem sabe seja uma atitude inteligente não querer e muito menos tentar compreender muita coisa? Por enquanto, não me permito fechar mais os olhos e a porta da minha consciência a ponto de deixar que imagens sem lógica reapareçam. Forte, respirando como se inspirasse ar puro. Cantando o mais alto que consigo quando estou em pleno engarrafamento. Cá estou eu. Feliz como uma convalescente tomando uma canja gostosinha.


12 comentários:

  1. ELIKA,

    QUE TEXTO DE FÔLEGO E ABSOLUTAMENTE, ENVOLVENTE.

    SEM CANSAR, FUI ATÉ O FINAL.

    ESTÁ DE PARABÉNS!

    NÃO CONHECIA O SEU BLOG.

    ACHEI REALMENTE, MUITO INTERESSANTE E TENHA A CERTEZA DE QUE VOLTAREI SEMPRE AQUI.

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    UM ABRAÇÃO CARIOCA!

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  2. Paulo,

    Seja bem vindo! Obrigada pelo comentário.

    Fui lá, já conferi sua arte!

    []s

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  3. Meu amor,
    Você está escrevendo como gente grande, e quando eu digo grande, não quero dizer que você está escrevendo bem, e sim como os melhores.
    Estou muito orgulhoso.

    Acho que você faria algo sensacional se perdesse o medo e escrevesse um conto. Aí depois viria outro e depois outros, até surgir um grande romance; pois tenho a certeza de que você tem a capacidade, o talento e a disciplina necessária para tal.

    Beijos

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  4. Oi Nelsu!

    Você é suspeito para falar... :-)

    Vou pensar nessa história de conto. Não é medo, é que não tenho ideia mesmo já que eu só escrevo sobre mim mesma. Mas vou me concentrar, pódexá.

    Beijos

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  5. "Corajoso é não cabra que não tem medo, não. Corajoso é aquele que, na hora do vamuvê, quase mijando de horror, transforma a urina num grito, cerra os dentes e parte pra cima do Bicho-mais-feio-que-pode-haver."
    A humanidade me dá um orgulho danado, quando penso nisso. Desde sempre perdendo tanto, e sempre (ou quase)andamdo em frente. Muitos tropeçando, meio perdidos. Outros com dentes cerrados, gritando pro Mundo...
    E uns poucos, bem poucos, de forma sublime...
    Transformando aspereza em mel.
    Obrigado Elika, como sempre.
    Assis Dutra

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  6. Obrigada você, Assis.

    Mas não transformei aspereza em mel não. Apenas coloquei cada um no seu devido lugar.

    []s

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  7. Eu imaginava que a íamos à cigana para saber o significado do pesadelo com a Esfinge na noite anterior, e que nos assolava. O que ele prenunciava? Qual seria o nosso destino? O que nos aconteceria? E o meu pesadelo teve uma peculiaridade, a esfinge se despregou do solo e avançou com suas asas de pedra sobre mim, que não conseguia sair do lugar.
    Ao contar para ela, fui eu que aprendi. Não saberia nada do meu futuro com ela.
    O pesadelo não prenuncia nada,ele é apenas o reflexo dentro de nós, de algo que vimos, sentimos ou passamos, sem perceber imediatamente a sua importância. Ah...então tá!
    Fiquei sem entender nada, atônito. Foi quando ouvi: tenha calma. Pense. Nem sempre estaremos de bom humor. Nem sempre queremos ser apenas felizes. (!!) Eita cigana brava.
    E que texto bom. Sério e bem humorado, com o talento de sempre. Peço desculpas, pela invenção nonsense. Beijo.

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  8. Pedir desculpas??? Fala sério, Djabal!!!

    É...eu sei que ele, o pesadelo (com seus monges budistas, freiras esquisitas, espadas de samurai, com direito a apenas uma ligação e o retorno só - por ter sido a única sobrevivente de uma chacina - à casa sem som e empoeirada) vai voltar.

    Enquanto isso, cá estou eu, leve de novo.

    Rindo à toa.

    beijosss

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  9. dessa vez é sem palavras.
    Li

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  10. Oi , sou uma garota que já passou por muito, e parece que tambem cada dia perco a pessoa/as que mais amo...
    Escrevi muitos poemas sentidos pela dor a falar , mas um dia decidi escrever este texto :
    O amor por vezes é como fosse uma "guerra" ...
    Num dia tanto estamos bem,como no outro só sentimos dor.
    Amar devia ser um sentimento agradável,mas rapidamente se torna numa angustia , num pensamento, numa marca ou num fim.
    Se AMAR é sofrer porque amar ?
    Se AMAR e escolher porque tentar?
    O amor faz-nos sentir bem,faz-nos pensar,faz-nos ter uma direção.
    Mas quando isto tudo acaba a palavra e o sentimento de amar não passa de uma frustação sem comparação !

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    1. Caso gostem agradecia que fizessem um comentário :)

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