terça-feira, 23 de março de 2010

O Livro de Poesias

* Os Comedores de Batata de Van Gogh.


Jorge Luis Borges, grande escritor argentino, disse que os poetas e os artistas não criam poesias ou inventam quadros. A poesia já estava no mundo antes dos poetas nascerem, assim como a beleza dos quadros. Esses homens conseguem alcançá-las e colocá-las no papel. Eles, na verdade, as transformam de forma que os nossos sentidos consigam também percebê-las. Isso justifica a impressão que temos quando lemos um bom poema de que poderíamos ser nós a tê-lo escrito. Como se o poema preexistisse em nós.

Há tempos eu tomei uma decisão baseada em muitas perdas: não emprestaria mais livro nenhum seja lá para quem fosse. Complicado, nem preciso dizer, manter tal postura. Quando acabamos de ler um bom livro queremos sempre que alguém que estimamos o leia também. O que mais engrandece um homem é dividir o conhecimento, já dizia Spinoza. O filósofo deve estar certo porque sempre que aprendemos algo ficamos eufóricos para compartilhar com alguém. Isso só pode ser um alimento senão pro corpo quem sabe para a alma.

O tempo passou, meus livros estão todos lá na minha estante depois que decidi que só eu os leria até a minha morte, mas sinto que não agi corretamente comigo mesma. E a oportunidade de rever tal decisão bateu na minha porta semana passada.

-Elika, estive na aula de eletricidade e o professor, que é engenheiro, demonstrou umas equações, mas não soube me dizer o que realmente significava determinada grandeza física como, por exemplo, o potencial elétrico. Você tem algum livro que me explique isso direito? - perguntou Pedro Winter que foi meu aluno há dois anos atrás e hoje está terminando o ensino médio e o técnico em eletrônica lá no CEFET.

- Tenho um muito bom, Pedro. (ai meodeos, tenho o melhor livro do mundo que explica essa porcaria direito, mas emprestar para um aluno o meu super livro de Eletricidade? Se bem que é o Pedro, garoto estudioso, cuidadoso, mas e se ele sumir com meu livro como tantos já fizeram? Não vou emprestar nada não, ele que compre e se vire como eu me virei para construir a minha biblioteca. A não ser que...)

- Você pode me emprestar?

- (ai, jesuis, será que isso vai dar certo?) Posso, mas com uma condição.

- ??? - Perguntou-me a testa de Pedro.

- Que você me deixe um documento como garantia de que vai me devolver o livro. - respondi seriamente e pausadamente mesmo porque enquanto falava me ouvia atentamente sem ter certeza de que estava agindo de forma adulta. Quer dizer, sabia muito bem, mas mesmo assim estava insegura. Sempre tenho medo de falar o que penso por saber que no momento em que falo não só não consigo exprimir direito o que sinto como tudo o que sinto vai se mesclando com o meu escasso vocabulário.

- ??? - Era o rosto de Pedro surpreso com a minha inusitada idéia (má como não pensei nisso antes? Ih!!! Mas nessa idade eles só têm a carteira de identidade...)

- Na verdade não. Eu quero mais que um documento! Eu só te empresto se você me der, em troca, algo que seja muito importante para você e que você precise no futuro. Só te devolverei o que você me der quando tiver o meu livro de volta.

Quando vi já tinha falado e antes que desse tempo d´eu me explicar direito, ou falar sobre a saudade que chega a doer dos textos que foram levados pelas mãos de grandes amigos, Pedro concordou sem questionar e disse para eu trazer sem falta o livro na quarta.

Lá estávamos, naquele dia que fica bem no meio da semana, cara a cara de novo. Eu com o meu melhor livro de eletricidade e ele com a mochila de sempre. Sem nada nas mãos. Certamente pensou que eu estivesse brincando. Agora era tarde. Ele já viu que eu trouxe o livro, vai levá-lo de mim e eu vou ter que enterrar essa história de escambo provisório de pedras preciosas sabe Deus aonde aqui dentro. Falar de novo nisso nem pensar. A idéia era apenas uma intuição que tive de que haveria uma solução para a minha angústia de querer e, ao mesmo tempo, recusar-me a emprestar meus livros. A maioria das vezes que ajo dessa forma (intuitivamente) me estabaco mesmo, o que prova que não se trata de intuição, mas de pura infantilidade. Devo lutar para tornar-me uma pessoa mais adulta. Tenho feito pouco esforço nesse sentido, confesso. Vai, Elika, empresta logo o livro e fique quieta!

Antes de guardar o livro que acabara de receber, Pedro tirou de dentro da mochila algo que, olhando assim rápido, não consegui identificar do que se tratava.

- Está aqui o que você me pediu, Elika. Eu não sei se você sabe, mas eu sou faixa marrom de karatê e essa é a faixa preta que meu tio me deu para o momento esperado. Ele foi o primeiro santista a receber a faixa preta de karatê e sabendo de minha paixão pela luta, e acompanhando toda a minha dedicação (agora deixada um pouco de lado por conta do vestibular), resolveu me dar de presente. Com certeza, eu vou precisar dela um dia e você terá o seu livro de volta.

A minha intuição estava certa! Mesmo eu escapando de tudo que é passível de sentido consegui um contato verdadeiro. Por ter sido compreendida e respeitada sem precisar de (muitas) palavras, senti uma ponta aguda de felicidade. Na verdade, nesse exato momento, eu me senti um poeta tal como ele o é entendido por Jorge Luis Borges. Estava tudo ali escondido, o equilíbrio entre as partes de um poema e a ocasião singular sujeita a ser captada por um pintor. Eu só precisei desistir de alcançá-los.



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Perguntas que me faço agora:


E se eu tivesse tido a coragem de fazer isso antes? O que será que guardaria dos amigos que já leram os meus livros?


E se alguém fizesse isso comigo? O que eu daria como garantia?


Será que o Pedro inventou toda essa história???




segunda-feira, 22 de março de 2010

Nara

Homenagem feita pelo papai à nossa filhota que acaba de completar 12 anos.

terça-feira, 16 de março de 2010

Saber amar não é amar. Amar não é saber.*

*Marcel JouhandeauHoje fui surpreendida pela manchete “Escritora afirma que as mulheres podem aprender a adestrar seus maridos”. Fiquei curiosa. Não porque Nelson precise de adestramento, aliás, não acredito que algum marido precise, mas o que me instigou foi o fato de constatar que aquilo não era brincadeira. Era de verdade. A autora se diz com a chave para salvar um casamento ruim. Cansada das atitudes do próprio marido, ela resolveu adotar alguns truques usados para adestrar cachorros, golfinhos e baleias. E o resultado, garante Amy Sutherland, foi sensacional. Em dois meses, seu marido ficou mais amoroso e menos briguento. A reportagem adiantava algumas dicas e recomendava fazer o teste em casa.

Coincidentemente, neste final de semana, por insistência de minha manicure, assisti ao filme “Prova de Fogo” que, de uma maneira não muito diferente da adestradora de maridos, nos dá a solução para os difíceis problemas que aparecem naturalmente devido à união legítima de um homem com uma mulher. União com pessoas de mesmo sexo não se enquadra nem no livro de Amy (que ensina como se relacionar com uma “espécie” diferente) e muito menos no filme que Marilene me indicou, pois este tinha como principal função propagar a religião evangélica e, como todos sabemos, homossexuais, para os homens machos de Deus, é obra do demônio.

Peguemos, primeiramente, algumas dicas preciosas do livro "O que a baleia Shamu me ensinou sobre vida, amor e casamento" (acreditem, esse é o título do livro). Amy nos aconselha a parar de reclamar ou gritar, devemos tratar os maridos à base de carinho e compreensão, ou seja, fazer o adestramento positivo. Para eles, as reclamações geram falta de comunicação e agressões. Devemos, aponta a autora, identificar a “raça” dos nossos parceiros, ou seja, identificar se gostam de futebol, ou se são loucos por carros e corridas, ou se são cinéfilos, coisas assim, pois, entender como seu marido funciona é o primeiro passo do adestramento e segue dizendo que devemos respeitar a natureza da raça. Outra coisa que Amy atenta é que devemos ignorar o comportamento ruim já que os homens, assim como os cachorros, são motivados pelos elogios. Por isso, também não podemos esquecer de sempre elogiar, elogiar e elogiar. De quebra, devemos oferecer sempre brindes. Lembre-se que cachorros adoram petiscos e como é tudo a mesma coisa... e, para finalizar essa inacreditável lista, a autora nos diz para ter muita paciência. Seguindo esses e mais outros passos explicados detalhadamente no seu livro, o seu casamento vai ser a sua principal fonte de orgulho e alegria.

O filme que como já disse propaga uma religião cristã faz a propaganda de um livro que virou febre na comunidade evangélica: “A Arte de Amar” ou algo que o valha. Não seria em nada diferente do livro de Amy senão fosse a omissão do paralelo que se faz entre os homens e os animais adestráveis. Cada página é uma dica valiosa de como agradar ou não se irritar com o próximo e todas juntas se resumem em aprender a respeitar a pessoa com quem convivemos. No filme é mostrado de forma incisiva que só conseguiremos aplicar, sem dificuldades, as 40 páginas do livro e alcançar a paz que merecemos se deixarmos que Deus entre em nossas vidas.

Dispenso tudo isso e ainda acho graça. Não preciso de manual para lidar com qualquer pessoa que seja normal. Aprendi a respeitar não porque li em algum livro ou porque algum pastor ou padre tenha falado que Jesus se alegraria se eu assim o fizesse, mas sim porque sempre fui respeitada dentro de casa. O contrário disso, que só fui aprender na rua, não foi bom e por isso mantenho distância. Com o amor não foi diferente. Já nasci sabendo amar porque desde o instante em que nasci fui amada e conforme fui crescendo e conhecendo pessoas exercitei, naturalmente, e cada vez mais intensamente, a tal arte.

Sei que tive sorte por sempre ter vivido num lar harmonioso e que minha posição, ao sair julgando as pessoas que recorrem a esse tipo de livro ou religião, é muito cômoda. Porém, fica registrado o meu lamento pela infelicidade daqueles que leram a manchete e foram se inteirar da notícia por necessidade de ter um casamento sem maiores encalços e, principalmente, por aqueles que saem de casa para ouvir um pastor lhes ensinar, em troca de algo que possa sujar ou perecer, como alcançar a paz dentro de um lar.

Em tempo (se há o direito ao grito porque não gritar?), tanto seguindo o manual escrito por uma maluca quanto por um Deus evangélico não conseguiremos alcançar felicidade plena alguma, pois, ambos acabam afirmando de uma forma ou de outra que o amor é uma soma de compreensões. Isso sim é a receita para vivermos sufocados! A verdade é que eu também, ao certo, não sei definir esse sentimento. Suspeito, entretanto, que somente amamos verdadeiramente quando nos deleitamos com a felicidade do outro e conseguimos reunir, mesmo que com algum ou muito esforço, em um mesmo total, todas as nossas incompreensões.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Dividindo pra Poder Sobrar

Semana passada fui à casa dos meus pais e minha mãe veio me cumprimentar segurando uma caixa. Elika, aqui! Não te dei presente de aniversário, mas comprei um troço para mim que achei que você se interessaria, daí comprei logo dois! Toma. Se não gostar pode me devolver que eu uso. Fiquei feliz por ela ter se lembrado de mim, mas logo minha testa enrugou por não entender direito o que estava acontecendo. Antes que perguntasse mamãe levantou a blusa e semi nua na minha frente começou a explicar. Eu vi na televisão, falei pro seu pai que devia ser bom, fica assim ó. E deu uma volta na minha frente. A minha testa continuou cheia de frisos.

Na caixa, havia a foto de uma modelo com corpo de modelo e um vestido bem justinho. Ao lado do corpo escultural estava escrito: reduz a barriguinha, afina a cintura, levanta o bumbum, modela as coxas, suaviza marca de flacidez e não marca a roupa! Lift’n’Shape Plus! Diminui até 3 números do seu manequim na hora! Olhei para mamãe ainda girando na minha frente sorrindo com o short lá embaixo e a blusa lá em cima. Comparei com a foto da caixa. Entendi tudo. A testa começou a ficar menos tensa e fui contaminada quase que instantaneamente pela cegueira de dona Ruth.

Tirei rápido a minha bermuda e o Lift’n ‘Shape Plus da caixa. Já estava sem entender nada de novo. Como mamãe enfiou aquilo no corpo? A tal cinta tem a largura de um palmo e tão elástica quanto qualquer sólido! Vamos lá, filha, que eu te ajudo. Quando a cinta estava na altura dos meus joelhos eu não tinha força para separá-los!!! Como aquilo passaria no meu quadril? Comecei a dar pulinhos com mamãe puxando para cima o Lift’n’Shape Plus a cada vez que meus pés batiam no chão. Caminhamos, assim, super juntas pela sala durante alguns suados minutos. Miraculosamente aquilo passou pela minha cintura, depois foi me espremendo de baixo para cima até chegar na altura do peito. Pronto. Eu não diria que estava como a modelo da caixa, ainda mais com aquela desenvoltura toda, mas sim, o resultado agradou. Já estava girando em frente ao espelho tomada por uma felicidade sem tamanho, me imaginando dentro dos meus mais justos vestidos quando me lembrei de um detalhe. Mãe e se eu precisar ir ao banheiro como faço você já foi ao banheiro na rua com isso? A frase foi dita assim mesmo sem vírgulas porque, como todos sabem, a vírgula indica uma pequena pausa para a respiração e se havia algo que eu não estava conseguindo fazer era encher e esvaziar meus pulmões. Mamãe me olhou assustada e disse, sem me convencer, que já havia conseguido realizar tal façanha. Agradeci o presente, li um pouco do jornal que meus pais assinam e vim me embora.

Em casa, muito mais tarde, fui retirar a cinta que se fundia ao meu corpo. Ela resistiu inicialmente à minha vontade e comecei a ficar aflita. Nara me ajuda aqui por favor minha filha? Mãe, como você conseguiu colocar isso? Nara não discuta me ajuda pega uma tesoura não pega tesoura não que isso deve ter sido caro esquece a tesoura vê se consegue enfiar os dedos e puxe com força para baixo.

Desvencilhada do carinhoso presente depois de alguns e não poucos minutos, com o barrigão para fora, bumbum caído, a flacidez despudorada à amostra e já conseguindo falar como antes, peguei o celular empolgadíssima. Enquanto fazia a janta das crianças recomendei o Lift’n’Shape para algumas amigas que desligaram o telefone sem ver a hora de experimentá-lo.

Segunda-feira estive de novo na casa de meus pais. Elika, olha o que eu comprei? Já ouviu falar? Ração humana! Olha você tem que misturar tudo... e tititi patatá. Comprei logo dois quilos! Um para mim e outro para você.

Agora só preciso misturar duas colheres de ração em um suco ou leite e não vomitar depois de ingerir. Em um mês perderei 4 quilos, ficarei menos cansada, com a pele mais viçosa, cabelos mais brilhosos e intestinos funcionando, digamos, a todo vapor. Os amigos já foram avisados e alguns já até disseram que estão dormindo melhor!

Assim como o conhecimento humano, determinadas alegrias só aumentam de tamanho quando divididas. Espero que a minha miopia continue aumentando e que a minha ignorância se faça sempre presente nesses momentos despretensiosos da vida.




quarta-feira, 3 de março de 2010

Testando o Português

Este texto foi escrito no calor da discussão sobre a reforma ortográfica. Apenas um pequeno manifesto.

Fui ao botequim do seu Manuel aqui ao lado de casa. O mesmo que me vendia bananadas vinte anos atrás. Sim, com certeza ele está bem velhinho e cometeu o amargo desatino de não mais vender doces. No balcão vemos somente pedacinhos de bichos regados em óleo e ovos cozidos cor de rosa. Só não mais inapetentes que a vida daquele lidador que parou de ser dançada ao som das gargalhadas altas que, num pretérito perfeito, já me fizeram sentir medo.

Deixei no balcão, com um silêncio oriental e um olhar carioca (ou foi com um silêncio carioca e um olhar oriental?), um bilhete que dizia assim:

Para mim, a geleia que você fez estava deliciosa. Para, você, de dizer que me causa enjoos. Em tempo, encontrei pelo, menos é verdade, nas linguiças.

Estás a zoare de um velho amigo? Não estou a entendere nada. Encontraste geléia na lingüiça? O que estás a dizere?

Ah, nada não. Só me certificando de que tirando os acentos haverá mais cansaço para aqueles que leem em pé.

Despedi-me com carinho, de uma forma tipicamente suburbana e, em casa, agi como os europeus. Se não pensadores em potência, escritores em ato.