terça-feira, 4 de outubro de 2011

O Bem, O Mal e Eu com Tudo Isso.


Pensei muito se deveria compartilhar essa história. Afinal, muitos podem se afastar de mim depois de ouvi-la ou pior, por curiosidade e por preocupação se aproximar. Mas fato é que certos acontecimentos na vida são como um bolo de aniversário que só cumpre seu destino se for dividido entre amigos. Então, não vejo outra opção senão contar a vocês o que aconteceu comigo na semana passada, mesmo sabendo que as consequências dessa partilha podem ser desastrosas.

Era para ter sido uma segunda-feira como tantas outras. Marilene viria até aqui em casa fazer as minhas unhas no início da tarde e depois disso eu voltaria para meus livros para continuar minha pesquisa sobre o desenvolvimento da física no século XVIII. Como ocorre em todas às vezes que nos vemos, perguntei sobre como anda a vida e a sobrinha de minha manicure enquanto minhas cutículas eram subtraídas pelo ligeiro alicate.

- Como vai a vida, Marilene? Lorena vai bem?

- Lorena está cada dia mais abençoada. – Marilene, como ela mesma me explicou, é de Deus e quem é Dele responde assim quando a pessoa vai bem. No entanto, parece que a benção tinha sido mal dada por esses dias e Marilene continuou. – Mas, ela anda com diarréia e vomitando.

- Desde quando? – Perguntei preocupada lembrando do rotavírus que Yuki pegou esse ano e que quase o desidratou em um dia.

- Desde que apagou a vela da macumba semana passada. Eu e Janete tava conversando numa esquina e quando vimos ela já havia soprado a vela. Para você vê. Como criança é ingênua. Não percebe o mal que pode causar mexendo nessas coisa.

Eu cansei de ouvir bobagens desse tipo da Marilene e sempre dizia hum hummmm para não me estender no assunto. Nós, ateus, agimos estranhamente com as pessoas religiosas respeitando o que elas tem de sagrado. A nossa descrença por esse motivo é muitas vezes silenciosa.  Evitamos um confronto de ideias para não machucar ou tirar o chão de quem vive em "solos firmes".

O problema é que agora envolvia a Lorena e eu não me contive.

- Marilene, ingênua é você! Essa menina precisa ir ao médico! Já ouviu falar em dengue, vírus, rotavírus, hepatite, meningite e patati patatá? – Eu falei patati patatá porque eu não me lembrava mais nome de doença nenhuma.

- Você não acredita no Diabo não, Elika? – Marilene segurava o alicate em riste, mas eu só pensava na Lolô doente e não me intimidei.

- Marilene, eu não acredito em Deus vou acreditar no Diabo? Olha aqui, eu vou te dar um soro com sabor de tutti frutti para você dar para a Lolô e você vai fazer assim assim e assim! – Na verdade assim assim e assim pode ser substituído, na cabeça do leitor, por um discurso surreal sobre o que acontece com as crianças que não vão ao médico quando mexem com a macumba de terceiros.

A unha ficou com a graça de Deus muito boa e Marilene foi embora depois de ter me prometido que cuidaria da Lorena direitinho.

Voltei rapidamente ao trabalho no meu escritório, mas percebi que algo estranho acontecia. Eu tinha que fazer uma força descomunal para manter meu livro aberto. A mesma que fazemos quando passamos pelas portas que foram feitas para ficarem fechadas. Se perdermos o contato, elas se fecham sozinhas. Jamais uma obra impressa aqui em casa se comportou com tamanha antipatia. O que estava acontecendo com o Cassirer? Ao forçar a leitura novamente, o livro pulou da mesa e caiu todo aberto no chão. Abaixei-me rapidamente para apanhá-lo e na primeira tentativa ele escapou de minhas mãos parecendo um peixe ensaboado. Estranho... Tentei de novo. Foi, então, que vi algo parecido com as patas traseiras de um cavalo aparecerem de repente ao lado do livro estatelado no chão. O meu olhar foi subindo lentamente acompanhando aquelas pernas cobertas com pelos vermelhos donde já se via uma capa também rubra por trás delas que deveria estar amarrada no pescoço, ainda longe do meu campo visual. Continuei vagarosamente a aumentar a distância entre o meu queixo e meu colo. Passei pelos joelhos que eram meio de gente meio de bicho, pelo sexo coberto por uma sunga preta, depois pela barriga muito parecida com essas que vemos em modelos masculinos que fazem propaganda de cueca em outdoors e, finalmente, cheguei ao rosto que possuía dois chifres na testa.

Eu estava diante do Capeta.

- Vade retro, Satanás! – Gritei, por reflexo, essa frase católica medieval.

Confesso que me deu um certo medo ao olhar diretamente por aquelas íris felinas, mas também estava muito preocupada e irritada com o estado que o Diabo havia deixado meu livro que nem sequer ainda estava em minhas mãos.

- Que história é essa de você não acreditar em mim?- Perguntou-me o Belzebu com um bafo de onça.

- Ora. Deixe de conversa besta!- Falei após pegar rapidamente o livro no chão e começar a  ajeitar as folhas amassadas pela falta de cuidado com que ele havia sido arrancado de mim e arrastado por todo o piso do escritório.

- Há o Bem e há o Mal. Isso é tão claro, Érika, que fico possesso quando vejo alguém que despreza essa diferença! Quem você pensa que é para ainda ficar falando pros outros que Eu não existo?

Dei as costas pro Diabo.

- Você é uma ignorante, menina! - Satã falava com ardor.- Você não sabe nada de mim e fica me desprezando! Pois eu vou te dizer, eu fiz uma revolução contra Deus, tá? Perdi? Perdi! Fui vencido? Fui! Mas NUNCA mais O afrontei de novo! Agora? Eu estou doido para derrotá-Lo!  Você vai ver, Erika. Vou expulsá-Lo do paraíso. Ele e todos aqueles anjinhos sem-graça! E aquelas virgens infelizes! E daí, Erika, você vai ver que EU existo pra valer! Você vai ver as atrocidades que hei de cometer! – O Diabo estava cada vez mais irritado com meu desprezo e começou a falar mais alto. - Você é uma idiota, Erika! Você conhece por um acaso o meu passado? Eu era o mais inteligente da minha turma, o mais bonito, o mais amigo, o mais tudo, sabia disso? E Ele que me expulsou. Aí foi o Seu erro porque eu estudei mais ainda, corri por fora como vocês dizem e estou pronto de novo para uma nova guerra!

- Lucífer, deixe de ser chato e burro! Mas se quer fazer isso eu te pergunto: o que você acha que vai acontecer depois? O que você pensa em fazer com as pessoas que dedicaram a vida  à Deus?

- Vão todos pro inferno para deixarem de ser imbecis! Tomarei conta do paraíso, substituirei os anjinhos pelos capetinhas e as santas pelas mais belas putas! Daí você verá a diferença. - Respondeu-me sem pestanejar.

- Reflita um pouco, seu Demônio. Olhe o mundo ao seu redor! Se existe o Bem e o Mal, como você afirma, e se houve briga no passado... o vencedor foi Ele? Se Esse Deus fosse bondoso e todo-poderoso por que não fez exclusivamente o bem?  Como podemos justificar o câncer, os micróbios, a difteria e milhares de outras doenças que atacam as crianças? Já contou a quantidade de pedófilos nesse mundo? Quantos inocentes morrem por causa dos ciclones, dos terremotos, da pestilência e da fome? Jamais considerarei bondoso um ser que, tendo poder de criar um mundo sem dor, cria deliberadamente o contrário!

- É, pensando bem... – Refletiu Satanás - se ele deixou a Amy Winehouse que tinha uma voz divina chegar no estado que chegou... Imagina com o resto. - Delirou. - Mas eu vou assumir esse volante e vamos ver se você não acreditará no Meu potencial, sua incrédula ridídula!!!

- E você acha que tomando o poder vai fazer melhor do que isso ou vai conseguir piorar essa situação? Acha que vai mudar alguma coisa? Pois saiba, seu Satã, que nada vai mudar.

- Farei novas leis, sua idiota. Aliás, nem vou precisar. Só trocarei nas leis que estão em vigência, o sim pelo não e o não pelo pode.

- E a idiota sou eu? O povo continuará desobedecendo  ou  se confundindo mais ainda com essas regras, não percebe? Veja os Dez Mandamentos! Parece claro para você? Pois, então, me responda, Satã: eu deveria honrar a vontade de meus pais se eles me pedissem para quebrar algum dos outros mandamentos? Posso roubar para prevenir um assassinato? É certo quebrar o sábado santo ou mentir para salvar a vida de alguém? Se fizer novas regras ou modificar as que já existem tudo vai continuar na mesma. O bem e o mal serão sempre relativos!

O Demônio ficou olhando pro teto com a mão no queixo pontudo. Depois de uma longa reflexão, falou:

- Puxa, eu estava tão animado. Agora estou confuso...você acha mesmo que a minha luta será em vão? Acha mesmo que não devo tentar? O meu exército estava com uma animação do capeta! Pronto para a Guerra, Érika. Acha que devo dispensá-los depois desse trabalho infernal que tive? O que eu faço agora, Érika?

- Quer saber? Faça o que você quiser, faça o diabo a quatro, vá pro diabo que te carregue, mas me deixe estudar pelo amor de deus!

Belzebu percebeu que havia perdido seu tempo comigo. Bufou descontente. Foi para a janela do escritório, ajeitou a capa como se estivesse preparando para alçar vôo.

Percebi, então, que aquele pobre-diabo tinha mesmo esperança de modificar alguma coisa nesse mundo. Assim como os monges budistas. Quem sabe ele tem razão? Quem sabe há o Bem e há o Mal? Quem sabe o que realmente está acontecendo com o mundo? E ainda, como cansa de me lembrar o meu orientador: Quem sou eu para afirmar alguma coisa?

Antes que ele fosse embora precisava tirar isso tudo a limpo.

- Espere, Satã, por favor. Preciso saber de uma coisa.

- Fala, querida.- Disse ao virar somente a cabeça em minha direção.

- A vela que a Lorena apagou ... tem alguma coisa a ver com tudo o que ela está passando?

- Vela? Que vela, Érika?

- Esquece. Pode ir.

Mesmo com a capa toda aberta não o vi voar. Pelo contrário. A gravidade atuou no coitado como atua numa pedra. Ouvi lá de cima um barulho de algo pesado se chocando com o chão. Coloquei imediatamente o pescoço para fora da janela e olhei para baixo. Vi somente meu cachorro olhando assustado para mim.

E foi exatamente isso que aconteceu.

Eis o pedaço do bolo de aniversário que te ofereço hoje. Perdoe-me se não coloquei a cereja.


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Os 10 Mandamentos de Elika para Deus





16 comentários:

  1. Mina fatia foi devidamente apreciada, Elika.
    A insistente advertência que você faz na abertura para mim só se justificou no alucinante "segundo tempo".
    Sabe de uma coisa? Nem dei por falta da cereja.

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  2. Fala, João. Tem tempo que não te vejo por aqui.

    Estava esperando a "primeira pedra", mas que bom que ela veio em slow motion e nem me machucou.

    =)

    Obrigada pelo comentário!

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  3. Elika,

    Li seu texto e sinceramente, achei seu diabo meio sem personalidade. Você briga, xinga e ele desiste? O diabo quer mais é que você perca a cabeça e xingue bastante.
    Não sei não. Se você tratasse o caso sobrenatural como algo que te assombre e que colocasse em dúvida seu ateísmo, seria mais congruente.

    Afinal de contas, o que é mais importante no seu texto? O sobrenatural que a manicure acredita e o fim da história da diarréia da menina ou você que quer brigar com o diabo?

    Beijos, Elise.

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  4. Elise,

    nem te conto...esse diabo já mudou tanto de personalidade... Já foi muito inteligente, muito doce, muito mais estúpido...mas, enfim, acabou mesmo virando esse diabo "frôxo" que vc viu.

    Eu tentei fazer com que o diabo me convencesse de alguma coisa, mas foi difícil. Ele tinha poucas palavras! =)

    O mais importante no texto? Boa pergunta...agora fiquei como meu diabo ... com a mão no queixo e olhando pro teto...

    Mas, vou te confessar. Eu jamais pensei em escrever algo assim, mas li uma crônica do Rubem Braga onde ele contou que passou a tarde com o diabo conversando. Daí, euzinha, na minha mais completa modéstia, pensei: se o diabo fala com o Rubem Braga por que não com a Elika Takimoto?

    Claro que o diálogo do diabo com o Rubem Braga foi bem mais inteligente do que o meu com o chifrudo, mas me dou por satisfeita por ele ter vindo falar comigo.

    Esperemos que na seguda vez, caso exista, a coisa fique mais interessante o o foco mais certo.

    Beijos e obrigada pela crítica.

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  5. Kkkkk. Muito bom... Ate Deus deve ter se divertido...

    Ana Cristina

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  6. Que bom, prima, que você gostou!

    Eu me diverti um bocado com isso.

    Beijos

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  7. Elika,

    Quero te dar os parabéns por seu empenho em escrever. Fico feliz que você leia minhas críticas com o devido foco que é pensando na estrutura do texto. Eu digo aos meus residentes que eu só critico a análise deles se acho que vale à pena. Portanto, na verdade, você está me dando a oportunidade de exercitar meu lado crítico em cima de um texto. Eu pretendo escrever algo sério um dia. Provavelmente não será tão engraçado quanto seus textos, pois não é tão espontâneo em mim assim. Só consigo ser engraçada se realmente algo aconteceu, mas não sai nada disso da minha própria imaginação.

    Por outro lado...se meu lado literário anda parado, continuo evoluindo nas minhas aulas de canto... Vou começar a treinar um duo com a harpista (acompanhada por harpa e não por piano!). Talvez consiga dar um recital ano que vem.

    beijos, Elise.

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  8. Eu sei que a sua crítica é sempre muito bem fundamentada e fruto de uma leitura atenta, por isso gosto de recebê-las.

    E sei também que vc sabe o quanto é difícil escrever. Tem textos que eu levo dias escrevendo e reescrevendo e reescrevendo e ainda assim não fica aqueeeeeela coisa de ó meodeos, sabe?

    O importante, eu aprendi, é não parar. Continuar inisitindo e lendo tudo o que encontrar pela frente. Se parar...parece que trava tudo.

    O doutorado tem me tomado muuuito tempo e isso tem me chateado um tantão assim, mas sempre que eu posso eu fujo para o Blog , mesmo porque ele me ajuda a organizar algumas ideias e fotografar alguns momentos.

    Bom, seguimos juntas nessa farra!

    Aguardo o convitedo recital!

    =)

    Beijos

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  9. Acho que você sabe, sou Deísta, mas isso não interfere em nada nessa leitura. Gostei muito do seu texto, não só da experiência como também do diálogo com o Diabo.
    Sou apaixonado pelos seus textos, parabéns Elika.

    Thiago Sardo

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  10. Fala, meu querido Thiago Sardo!

    Sempre bom te ver por essas bandas. Sua visita para mim é uma honra.

    Saudades

    Beijos

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  11. Uma das maiores delicias de seus textos, eu acho, mora nessa incerteza, duvida enevoada, que permeia todos os cantos que vc visita. Pessoalmente, convivo com essa impressão de que a gente nunca sabe de nada no fim das contas, só desconfia.
    E assim, gostei tantotanto de existir um capeta-idiota que aumenta a minha desconfiança de que o mal e a estupidez são sinônimos.
    Andre Nakamura

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  12. OI, Andre

    É... pode ser...eu sou meio socratiana em relação as coisas da vida e a tese do meu doutorado: "Só sei que nada sei" é meu lemma (com dois emes mesmo).

    Textos piores virão.

    =)

    Obrigada pelo comentário

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  13. Nossa, como foi divertido! Parece até texto daqueles programas de comédia do Plim-plim. É inovador pela confusão que vc causou na cabeça do anjo caído, pois nunca o vi perdendo as rédeas...É, essa aula de filosofia deve ser extra-terrena...

    bjs

    Luciana do Mazinho

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    1. Oi, Luciana!

      Só hj vi seu comentário! Pois é... haja confusão na minha e na cabeça do diabo! =)

      Isso que é a verdadeira confusão dos diabos.

      =)

      Beijos

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  14. Muito bom o texto, pena que poucas pessoas queiram perceber o que o mundo tenta mostrar.

    Beijokas,

    Zé - ex aluno

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