segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Despindo Maria Lúcia



Maria Lúcia havia tomado um banho demorado. Após secar-se, hidratou a pele com óleo de semente de uva. Perfumou-se. O dia estava lindo e combinava com o seu vestido longo e estampado. De salto Anabela, levemente maquiada e com uma bolsa grande e estilosa pendurada no ombro direito entrou no seu carro possante cujo estacionamento era em uma das ruas de Copacabana. Virou a chave na ignição, ligou o ar condicionado, colocou o novo CD da Marisa Monte, ajeitou os retrovisores quando foi surpreendida por uma menina suja que batia na janela.

A princípio, Maria Lúcia sem ao menos saber o que a pobre menina queria, balançou o indicador de um lado para o outro, intercalando esse gesto com outro meneio negativo quando apontamos o polegar para baixo. A menina insistiu para que Maria Lúcia abaixasse o vidro e a moça de pele macia e aromatizada permitiu que somente uma frase passasse por dois centímetros de sua atenção.

- Posso ir com você até o centro? – Perguntou Stéphanny que de princesa nem o nome conseguiu ter.

- Queridinha, não estou indo para a cidade tá, meu bem? – Mentiu com serenidade e de forma espontânea Maria Lúcia que apesar de ter pronunciado inverdades o fez com carinho - não perceptível pelo vidro.

Assim, Maria Lúcia saiu da vaga em que estacionara e em menos de dois minutos estava deslizando pelo asfalto negro da Avenida Atlântica. A moça cuja pele estava coberta com estampas de flores partia otimista em direção ao centro da cidade para enfrentar a única possibilidade umbrosa naquele dia desanuviado: a consulta marcada com o seu ginecologista.

No entanto, algo aconteceu. O rosto sujo de Stephanny aparecia no meio dos carros, nos sinais fechados, na negritude do asfalto. Por que você mentiu, Maria Lucia? Era uma dessas vozes que parecem ser do além, mas que na verdade são de um grilo-falante. Ora, por que! Porque eu posso ser assaltada, a menina pode estar armada com um caco de vidro, roubar meu relógio da Mikael Kors! Ora, Maria Lúcia, não seja ridícula! Disse o Grilo-falante. Aquela menina lá tinha jeito de quem queria seu relógio? Por que diabos uma pessoa que pretende assaltar outra pediria carona com tanta humildade? Mas, Maria Lúcia estava relutante. Mandou o Grilo para os confins do inferno, pois não havia do que se culpar. A menina poderia muito bem pegar uma condução. Estava aparentemente bastante saudável para isso.

Como os mais prósperos e afortunados são insensíveis!  Nós todos que já vimos uma cena semelhante sabemos que Stéphanny não pega ônibus porque não tem dinheiro algum! A pobre-menina passará o dia todo pedindo esmolas e muitos nem terão a delicadeza de Maria Lúcia de contar-lhe uma mentira.

E lá seguia Maria Lúcia com o corpo limpo e a alma lavada, toda dona de si dentro daquele vestido adornado com flores não cheirosas. Porém, antes mesmo de entrar no túnel, Maria Lúcia não mais se sentia tão bonita quanto outrora. A roupa lhe parecia muito papagaiada, os sapatos não combinavam com a estampa do tecido, o batom era vermelho demais...O que me custava ter dado uma carona a uma menina? Deixa isso pra lá, Maria Lúcia. O mundo não vai mudar com esse audacioso gesto de caridade! Mas e se essa menina foi a minha “prova” aqui na Terra? Às vezes pensamos que Deus será claro ao nos oferecer a redenção e a salvação, mas vai que estamos enganados? Vai que Ele se disfarça como o Diabo? Vai que Deus queria decidir o meu destino hoje com esse pedido de carona? Aquela tamanha humildade bem estava me parecendo suspeita... De onde viria? Porra, Maria Lúcia, como você é burra! Deus é super dissimulado! Aquele pedido de carona era fingimento! O que Deus queria ao usar aquela máscara era te testar!

Maria Lúcia ficou pálida. O túnel Rebouças lhe pareceu como o caminho para as profundezas do inferno e ela não poderia passar por ele de maneira alguma. Pegou o primeiro retorno.

E agora, Maria Lúcia, vai dizer o que para a menina? Que esqueceu alguma coisa? Que se arrependeu de ter mentido? E se a fedelha não estiver mais lá, Maria Lúcia? O que será de você?

Stéphanny estava ali perto no sinal segurando uma moeda de dez centavos mendigando pelos vidros mais moedas iguais a que firmava entre os dedos. Os motoristas fingiam nada ver. Maria Lúcia chamou a   pequena gritando “Ei, garota! Ei! Vem cá!”.  Stéphanny foi até Maria Lúcia que começou a gaguejar se explicando, dizendo que havia se esquecido para onde ia, que o médico dela possuía dois consultórios, que ela estava ficando surda e que não havia entendido direito o que a menina queria, que patati patatá...Stéphanny não parecia interessada em nada daquilo. Entrou no carro como se já soubesse que a madame voltaria e ficou o caminho inteiro respondendo com um português todo errado às perguntas de Maria Lúcia. A vida de Stéphanny daria um outro conto que deixarei para uma outra oportunidade. O ponto é que Maria Lúcia estava feliz e aliviada em ter ajudado uma coitada desafortunada e carente, a despeito do carro ter ficado com um odor desagradável mesmo depois da guria ter saído.

O médico deu péssimas notícias à Maria Lúcia. Ela teria que começar urgentemente uma quimioterapia e, muito em breve, possivelmente ser submetida a uma mastectomia.

Stéphanny realmente não reconheceu todo o esforço de Maria Lúcia.

Maldita seja.





4 comentários:

  1. Essa Maria Lúcia é a mesma do Legião, Jeremias e tudo? Bom, ela devia estar danada de cheirosa e os detalhes do que vestia dificilmente deixariam de escapar a minha percepção. Gostei dela e da história, enfim, Elika. Nunca acreditei muito nessa historinha de ir pro inferno depois da morte. Agora, pelo sim, pelo não, ando querendo saber em que departamento do céu estaria minha conta de pecados e se o que me sobra de vida ainda daria pra pagar à vista, com as devidas instruções de como. É que se existir mesmo inferno depois da morte, acho que sei o tipo de música que tocam lá: funk. O resto não me assusta.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. João,

      Lá não toca só funk. Vai por mim que já tive a visão do inferno várias vzs. Lá tb toca músicas cantadas pelo Padre Marcelo Rossi e "louvores" evangélicos cantados com os olhos fechados.

      =)

      Obrigada pelo comentário!

      Bjs

      Excluir
  2. Nossa, essa doeu...A total remissão dos pecados é quase impossível, acho que vale a pena pedir a ajuda dos anjos para tudo aquilo que somos incapazes de resolver.

    ResponderExcluir
  3. Que bom que doeu. Foi para isso mesmo.

    =)

    Qto a ajuda dos anjos, quisera eu acreditar neles para amenizar as minhas dores...

    ResponderExcluir