Sofia possuía o hábito de ir toda semana a
um mesmo salão de beleza perto de sua casa, localizado no subúrbio do Rio de
Janeiro, para que a manicure Marilene cuidasse das unhas de suas mãos e de seus
pés. Avessa àquele ambiente, Sofia sempre ia acompanhada de um livro, costume
esse que não passava despercebido aos olhos de Marilene. Entre um cuidado e
outro com as extremidades dos dedos dos pés de sua cliente, Marilene procurava
ao menos ler (pronunciando sílaba por sílaba sem que se ouvisse um som saindo de
sua boca) o título do livro quando a capa era-lhe acessível aos seus olhos
verdes. Quando Sofia fechava o livro por algum motivo, Marilene sempre
perguntava do que se tratava a leitura e a resposta de Sofia era vaga demais
para a pobre da Marilene: literatura. Na semana seguinte ou no máximo quinze
dias depois, a mesma pergunta já que o livro era sempre diferente. E a mesma
resposta ininteligível para Marilene. Sofia era amante de livros cheio de
histórias e Marilene não entendia como sua cliente não se cansava de ler sempre
sobre um mesmo assunto. Literatura.
Por um motivo que é bastante óbvio ligado
à matemática e à cifrões e que não aprofundaremos no assunto, o salão faliu.
Marilene diante dessa notícia e espertinha que só resolveu manter algumas de suas
clientes atendendo-as em domicílio. Ao invés de Sofia ir até Marilene, agora
Marilene que ia até Sofia tal como Maomé foi às montanhas com a diferença de
que essas jamais tinham ido até Maomé.
Sofia agora, no silêncio de sua casa, permitiu que alguns diálogos fossem travados com sua manicure de forma que algo
além de unhas pintadas era somado àquela relação. Os filhos de ambas passaram a
ser tratados pelos nomes. Da vida de uma, a outra grande parte sabia e a vida
da outra, que frequentara a escola por apenas seis anos, Sofia sem querer
modificou.
Houve um dia em que Marilene, sentindo-se
enfim segura, resolveu perguntar algo que ela jamais havia tido coragem. Por
que Sofia lia tanto sobre o mesmo assunto. A moça demorou a entender a pergunta
de sua curiosa manicure e após algumas frases desconexas relembrando o passado
em que trabalhava no salão e alguns títulos de livros associados à
cores de esmalte, Sofia enfim compreendeu. E da posse dessa compreensão
sobre o mundo de Marilene, Sofia resolveu que responderia à sua manicure. Mas
sem explicar. De uma forma que Marilene além de entender, entrasse um pouco
nesse universo formado de letras impressas que emocionam e modificam quem por
ele viaja. Literatura.
Foi então que ao invés de ler em silêncio,
Sofia agora lia em voz alta contos de Clarice que cabiam naqueles rápidos e meu
Deus cada vez mais rápidos minutos enquanto as cutículas lhe eram subtraídas.
Seria um conto por semana. O primeiro foi “Felicidade Clandestina”. Conforme o
conto avançava e a menina de Clarice sofria por não conseguir um livro
emprestado, Marilene acelerava o abrir e fechar do alicate e por fim, antes de
ter terminado o serviço, tinha seus olhos verdes úmidos que acompanhavam fixos
as frases de Clarice lidas por Sofia. O conto terminara e Marilene não voltara
ao seu serviço imediatamente. Levou alguns minutos digerindo todo o alimento
recebido pelos ouvidos. Voltou em silêncio o delicado trabalho. Coloriu as
unhas dos pés de Sofia. Em silêncio. Limpando de forma intermitente seus olhos
e seu nariz com a parte de fora de sua mão direita. Silêncio.
Na semana seguinte, Sofia lera “Restos de
Carnaval” para Marilene. No momento que a menina de Clarice conseguiu uma
fantasia de papel crepom porque havia sobrado material da vestimenta de
carnaval de outra criança, Marilene disse aahhhh no mesmo instante em que levou
a mão que segurava o pincel úmido de esmalte ao peito sujando-lhe a camisa.
Quando Clarice ao fim, mostra-nos o desabrochar de uma rosa, lá estava Marilene
de novo com o serviço parado. Nem se importando com o vidro de esmalte
destampado que perdia sua fluidez ao contato com o ar que Marilene inspirava
expirava inspirava expirava inspirava expirava inspirava expirava até que as
lágrimas enfim corressem pela sua face contraída.
Quando Sofia leu “Miopia Progressiva”,
Marilene ficou atônita. A ideia de um menino míope que percebe que a
chave de sua inteligência não estava nem com ele e nem com ninguém, que por
intermédio dessa prematura aceitação este menino tenha vivido em serena
curiosidade, ao perceber pelos olhos míopes do menino de Clarice o
relance mais profundo e simples do universo em que vivia e que por vezes
devemos tirar nossos óculos para melhor enxergar... ah isso tudo perturbou
muito a pobre da Marilene como desnorteia a qualquer leitor que descortina
Clarice.
“Perdoando Deus” Marilene não entendeu. De
fato Clarice lispectora muito intensamente. Fala que jamais se habituará a ela
porque ela, que dela só conseguiu foi se submeter a ela mesma, pois é muito
mais inexorável do que ela, ela estava querendo se compensar dela mesma com uma
terra menos violenta que ela. Isso era demais realmente para qualquer mortal.
Sofia que pensava que havia entendido Clarice, não conseguiu explicá-la para
Marilene. E bem se sabe que o que não conseguimos ensinar é porque não se foi
apreendido. “O Ovo e a Galinha” não foi feito para ser entendido mesmo e sim
acomodado à forma da mente de quem o lê. Sofia preparou bem Marilene para
recebê-lo seja lá do jeito que ela recebesse. Explicou que se lesse outro dia,
Marilene sentiria outra coisa e quantas vezes fosse lido as mesmas tantas o
conto seria diferentemente recepcionado. Marilene adorou.
Durante o intervalo de uma semana em que
Marilene demorava para voltar à casa de Sofia, ela tentava relembrar de cada
parágrafo de Clarice, cada etapa do conto para que pudesse ela também contar
para outras pessoas e enternecê-las. Ao fazê-lo, percebeu que as pessoas para
quem repetia a história não se emocionavam tanto quanto ela ao receber Clarice.
Marilene não entendia porque não comovia. Ao retornar à casa de sua cliente
ledora, pedia para que Sofia lesse o conto que ela, Marilene, havia tentado
reproduzir por si mesma e falhara. E falhou. E continuava falhando toda vez que
resolvia contar um conto que lhe fora lido.
Até que um dia Marilene pediu que Sofia
imprimisse no "computadô alguns conto" para que ela pudesse ler para
seu marido e para seus filhos. Sofia fez melhor e deu para sua manicure um
presente comprado há tempos e que estava só esperando ser desejado: Clarice na
Cabeceira, um livro de contos consagrados de Clarice Lispector.
Na semana seguinte: Fernando Sabino,
Marilene. Marilene, Fernando Sabino. E lá ia Sofia após breves apresentações
fazer Marilene morrer de rir com “Deixa o Alfredo Falar”, “Aflições de um
Noivo” e “Conversa de Botequim”. Marilene, Rubem Braga. Rubem, Marilene.
Pronto. Marilene queria levar Rubem Braga para casa de qualquer jeito. Mário
tem que conhecer isso, dizia a Manicure. Luis Fernando Veríssimo, J.J. Veiga,
Millôr, Raquel de Queiroz ... Marilene queria que todos fossem morar com ela.
Sofia até onde sabemos ainda lê para
Marilene enquanto suas unhas recebem seus cuidados. A manicure que estava acima
do peso sempre gostou de receber de suas clientes uma amostra de um prato feito
por elas em casa, mas sempre perguntava como prepará-lo para que toda a sua
família pudesse, na medida do possível, também degustá-lo. Sendo assim, Sofia
mostrou para Marilene os melhores sebos do Rio e as bibliotecas públicas as
quais todos tem acesso.
Marilene enfim entendeu que um mesmo tipo de assunto
pode ser inesgotável.
A mente que não conseguia imaginar um
mundo sem água e energia elétrica agora é incapaz de conceber um mundo sem
livros. A manicure que morria de medo da solidão agora com isso não se preocupa
mais. Ela que imaginava o paraíso repleto de cachoeiras, árvores e anjos agora
pressupõe que ele seja uma espécie de livraria. A mulher que se julgava
analfabeta porque lia com dificuldade (que ainda não foi sanada por completo)
agora se pergunta sobre os que sabem ler e não leem. Os olhos verdes que
se viam prazenteiros de algumas maneiras agora somaram a essas tantas uma
outra .
Incomensurável pela sua infinitude,
mas que também é uma forma de felicidade.
Literatura.
Lindo! Você está cada dia melhor.
ResponderExcluirTambém...
...bebendo das nossas melhores fontes.
Muito interessante, esse negócio de ser inspirado por outros, não?
Aposto que você já tem inspirado bastante gente.
Eu mesmo fiquei com vontade de escrever depois dessa.
:~)
Será???
ResponderExcluirQue quem não conheça os contos mencionados os procure... valeu a intenção da semente!
=)
sen
ResponderExcluirsac
ion
all
mui
Excluirto
o]bri
ga
da
!!!
Excelente e emocionante!
ResponderExcluirObrigada!
ExcluirBeijos, Maza!
Querida Elika,
ResponderExcluirEstá sublime!
Parabéns!
Beijos, Elise.
Thanks!
ResponderExcluirAcho que após seu conto lerei todos os livros da Clarice... rs
ResponderExcluirMarcella Alecrim
:-)
ExcluirO objetivo é esse!
Mas se não conhece os contos mencionados dê uma lida neles. Nos emudecem.
Ufa! Acho que caiu um cisco no meu olho! Emocionante e inspirador, como sempre! =)
ResponderExcluirBeijos, Priscila Sakalem.
Jura??????
ResponderExcluirIUUUUPIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!
Ganhei meu dia!!!
Beijaço procê!
Sou amiga de infância da Priscila sakalem e vi o post dela no facebook falando sobre o texto... Como sou muito curiosa pedi o link e aqui estou. Tenho que concordar com a Priscila e dizer que suas palavras são mágicas e de uma fluidez perfeita. Amei o post e passarei aqui sempre para ler um novo ou um antigo.
ResponderExcluirOBS: Lembro de quando eramos novas e a Priscila tinha um hábito (que na epoca era estranho)de estudar lendo os textos ofertados pela escola ou os que ela fazia em voz alta, mas tinha um detalhe, eu tinha que estar sempre junto, escutando e prestando atenção, como se ela tivesse me transmitindo a informação que muitas vezes não me era útil mas que ainda sim eu absorvia.
ADOREI.
Bjuxxx
Aline Miguel
Aline,
ExcluirSerá um prazer ter a sua companhia por aqui. O blog está cheio de textos antigos. Muitas crônicas que justificam o nome ("Minha Vida é um Blog Aberto"). Fique à vontade. =)
Adorei o seu comentário e a imagem de uma amiga lendo para outra.
Grande beijo e volte sempre!
Muito emocionante, Elika! Lindo! Fiquei com os olhos cheios de lágrimas...
ResponderExcluirArqueira,
ExcluirMuito obrigada pelo seu comentário! Fui atingida pela flecha da felicidade ao saber que consegui te emocionar!
Faltou o:
ResponderExcluirDesenho feito pelo artista Sergio Ricciuto Conte.