Quando
somos bem ou mal educados por uma família achamos natural o que vemos ou
ouvimos em casa. Ao cair no mundo, começamos a estranhar as diferenças e
questionar o certo e o errado em vários referenciais diferentes da nossa
morada. Quando fui pela primeira vez para a escola com seis anos, deparei-me
com o fato de estar aprendendo algo errado com meus pais como a pronúncia das
palavras. A partir de então, comecei a fingir que acreditava em tudo o que eles
me diziam sem mais nem sequer prestar muita atenção na forma em que as palavras
eram articuladas.
(Papai é
japonês e possuía dificuldades naturais à sua etnia com erres e eles. Marília,
colírio, por exemplo, eram um plobremaço. Mamãe, por causa de um fenômeno
fonético já explicado por historiadores e que nada compromete a sua inteligência,
falava Cráudia, chicrete, pranta, ingrês, frauta,...o que atrapalhava menos a
papai do que a nós que aprendemos a nos expressar com os dois.)
Dentro
apenas de mim mesma, decidi que não mais limitaria a duas pessoas a responsabilidade
de ensinar-me o que era o direito e o desacertado a fazer nessa vida. E aos
quatorze anos, já namorando com aquele que seria o meu marido, comecei a
frequentar uma residência muito distinta da minha, a começar pelo número reduzido de pessoas: a casa organizada da minha
sogra. Um porta-retrato tirado do lugar e recolocado em um ângulo diferente era
percebido e imediatamente reajustado de forma que em qualquer cômodo da casa em
que entrávamos, tudo estava milimetricamente em ordem e organizado como nos
cenários de novela. E em matéria de limpeza era tal e qual um bom consultório
de dentista. Minha sogra havia me ensinado que a casa da gente reflete como
anda a nossa cabeça. Se nos deparamos com um ambiente sem ordem, dizia ela,
pode ter certeza de que a pessoa que lá vive está de alguma forma
descompensada. Achei aquilo o máximo e mega correto.
Com o
tempo, ao voltar para a minha vivenda o que jamais me incomodava começou a me
importunar: a bagunça feita pelos meus irmãos e também pelos meus próprios
pais. Fosse nos quartos, na sala, no banheiro ou na cozinha eu ficava
boquiaberta com o desleixo de todos e fazia o que deveria ser feito: arrumar,
pois assim os ajudaria a encontrar o equilíbrio interno que lhes faltava.
Aconteceu
que um dia, já com mais idade, fui a uma confraternização de final de ano na
casa do tio Nero e da tia Neide, pais da prima Silvana, parentes de minha
sogra. Lembro-me como se fosse hoje o que senti ao observar aquela moradia em
que visitei somente uma vez. Era tudo muito simples, os tios recém-conhecidos
eram pessoas extremamente humildes, mas não havia dúvidas que cuidavam daquele
simpático cafofo com muito amor e carinho a despeito de ter nitidamente objetos fora do lugar. Não hesito em dizer que ali foi um
dos lugares mais bonitos em que já pisei.
Alguns
meses se passaram. Recém-casada e completamente neurótica com a
arrumação, por algum motivo ligado a comemoração e festa, fomos à casa da
prima Silvana, lá no Recreio. Casa grande, bonita, em condomínio fechado e
tudo! Tio Nero já era falecido, mas a tia Neide estava lá. Viria a deixar
saudades de sua doçura pouco tempo depois. Como de costume, Silvana, uma mulher
que aos meus olhos era bem resolvida e super determinada, convidou-me para
conhecer a parte de dentro daquela imponente habitação e eu aceitei prontamente
cheia de curiosidade.
A casa
estava uma zona segundo meus novos parâmetros sograis! Silvana nem sequer se
desculpou e mostrava cada cômodo bagunçado por seus filhos eu diria até com
muito orgulho. Assim foi com a sala cheia de fitas e consoles de vídeo-game,
com as camas removidas e as roupas jogadas no quarto das meninas. Mas, de uma
forma estranha, senti exatamente o mesmo de quando pisei na casa de seus pais.
Mais uma vez, eu estava dentro de um lar cheio de vida bem vivida.
Onde a
minha sogra havia errado quando disse que anarquia de nossa casa reflete a
balbúrdia de nossa mente? Em parte, ela tem razão, pois, nossa casa deve ser o
centro de resolução de nossos problemas. E, para ser um local onde vivem
companheiros que, mesmo na divergência, se apóiam e nas lutas se solidarizam, é
bom que este seja realmente limpo e organizado. Mas, eu agora acrescentaria: de
uma forma que nos reconheçamos e que nos identifiquemos quando estamos
nele. Para que tenhamos pressa em chegar e para que retardemos ao máximo a nossa saída, a nossa morada deve ser arrumada de um jeito que nos sobre tempo de
viver nela.
Há de se
gastar alguns minutos afofando as almofadas, esticando lençóis, limpando,
esterilizando, quiçá ajeitando os porta-retratos! Mas nada que impeça um
‘quando’ bem demorado para tirar os livros das estantes e um ‘onde’ bem
espaçoso em que as crianças possam ser criativas. A forma em que vivemos em nosso lar não deve nos envergonhar mas sim nos encher de orgulho diante das visitas. E isso, a despeito de toda a
admiração e carinho que tenho pela minha sogra, eu aprendi mesmo foi com os meus pais. Só percebi que eles estavam certos
quando tive o prazer de conhecer tio Nero e tia Neide e o deleite
de ser apresentada ao angu de caroço da prima Silvana pelos seus olhos repletos de vanglória.
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O quadro que ilustra esse
texto é de CHILDE HASSAM e se chama A sala das
flores.
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